Comemoramos, neste mês de maio, a assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel, que escreveu seu nome na história ao concluir um ciclo de leis abolicionistas no Brasil e, acabando, em definitivo, com a legalidade e a legitimidade de um dos atos mais atrozes da humanidade, o de escravizar outro ser humano e tratá-lo como mercadoria em praças públicas e em mercados. Eram negros, arrebatados da mãe África, traficados e que aqui desempenhavam funções domésticas, agropastoris e de “animais” de carga e de tração, submetidos a terríveis castigos e torturas.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Brasil: 500 anos de povoamento. Rio de Janeiro, 2000), o Brasil foi o país, no continente americano, que mais importou escravos africanos entre os séculos XVI e XIX, cerca de 4 milhões pessoas (homens, mulheres e crianças), mais de um terço de todo o comércio negreiro do período no mundo.
Infelizmente, o trabalho escravo não acabou com a Lei Áurea e continua atualmente, quando convivemos com a chamada escravidão contemporânea ou o trabalho análogo à escravidão. São milhares de pessoas submetidas a trabalhar sem salário ou qualquer direito trabalhista, cumprindo jornadas de trabalho excessivas, privados de sua liberdade. Vivem, em geral, em condições subumanas, sem acesso à saúde, alimentação digna, condições de habitação e higiene.
Os números são assombrosos. Entre 1995 e 2021, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel libertou mais de 57 mil trabalhadores em condições análogas à escravidão. Só no ano passado foram resgatadas quase duas mil pessoas e, de janeiro a abril deste ano, mais de 500 pessoas. Em 2018, segundo estimativas da Walk Free Foundation, 369 mil pessoas foram submetidas à escravidão no Brasil. No mesmo ano, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), 40,3 milhões de pessoas foram submetidas à escravidão no mundo.
Uma análise superficial, e não por isso menos relevante, nos dá indícios de outro problema muito grave no Brasil. O trabalho escravo contemporâneo está intrinsecamente ligado às atividades rurais e aos latifúndios. Basta ver que, das 1,937 pessoas resgatadas em 2021, 89% estavam no trabalho rural, no cultivo de café, de alho, produção de carvão vegetal e cultivo de cana-de-açúcar.
Desde 1995, quando o Brasil reconheceu o trabalho análogo à escravidão junto à Organização Mundial do Trabalho e à Organização das Nações Unidas, e criou o Grupo Móvel, muito se avançou, principalmente no aspecto da lei. Mas, indubitavelmente, isso não é suficiente. Precisamos de leis mais duras e sanções mais definitivas em relação aos que praticam o trabalho escravo. É preciso também avançar em relação à reforma agrária no Brasil, reduzindo o impacto dos latifúndios e dando condições aos trabalhadores rurais de ter sua porção de terra para produzir.
Na trilha desse assunto tão emblemático para o Brasil histórico e atual, recomendo – para quem quiser conhecer um pouco mais sobre o tema – assistir ao filme “Pureza”, com a nossa queridíssima conterrânea amazônica, a paraense Dira Paes, que estreou nos cinemas esta semana e conta a história da cruzada de uma mãe para libertar o filho do trabalho escravo contemporâneo, baseado em fatos reais. #Ficaadica.
* É diretor do Núcleo de Educação Política e Renovação do Centro Preparatório Jurídico e atual presidente do PSDB no Amazonas. Diplomata, foi por 20 anos deputado federal e senador, líder por duas vezes do governo Fernando Henrique, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, líder das oposições no Senado por oito anos seguidos e três vezes prefeito da capital da Amazônia.