Manaus e seus médicos

Era a medicina exercida por convicção, uma verdadeira comprovação prática da aplicação concreta do juramento de Hipócrates

O apelo era quase patético: “Meu filho, traga o doutor Rayol para me ver”. Era minha tia Sinhá. Perto dos noventa, magrinha e com não mais que um metro e meio, padecia de algo que, suponho, fosse uma bronquite crônica. Por conta disso, seus acessos de tosse eram regulares e prolongados. Ao fim de um deles me formulou o pedido. No dia seguinte fui à cata do médico solicitado. O doutor José Rayol dos Santos morava na rua Luís Antony, ali nas proximidades do Bairro do Céu, e tinha consultório, se me não falha a memória, na rua Marcílio Dias. Baixinho e gordo, não relaxava no uso do terno que, nele, adquiria conotação mais solene em razão da gravata borboleta a lhe ornar infalivelmente o pescoço. Era uma figura mais que respeitada na Manaus do século passado, quando, ainda sem Faculdade de Medicina, a cidade sabia dar valor aos profissionais do ramo que, sendo poucos, granjeavam a admiração de nossa gente pela maneira absolutamente escorreita e ética com que desempenhavam seu mister.

Já não me recordo se pegamos um carro de praça (naquele tempo não havia táxis) ou se fomos no Austin preto que o próprio doutor Rayol dirigia. O certo é que, com a sua maleta preta característica, foi ele até o nosso endereço e, com paciência beneditina, ouviu as queixas e reclamos da velhinha, receitando-lhe algum medicamento que, se não a curou por completa impossibilidade física, fê-la recobrar o ânimo, de novo alentado pela só presença do médico preferido, a impor respeito e esperança.

Em outro campo da medicina despontava a figura altiva e elegante do doutor Djalma Batista. Era cientista e literato. Nasceu no Acre, na longínqua Tarauacá, mas veio para Manaus aos treze anos, concluindo o curso secundário no Colégio Dom Bosco, no ano de 1933. Relata ainda a Wikipédia que, formado em medicina na Bahia, retornou ao Amazonas em 1939, dando início a uma carreira que o impôs à admiração de toda a comunidade.

É vastíssima sua colaboração literária e científica na imprensa da capital, o que lhe valeu o ingresso na Academia Amazonense de Letras, cuja presidência ocupou, paralelamente ao exercício das funções de vice-presidente do Conselho Estadual de Cultura. Integra-lhe o currículo a direção do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, sendo de notar que, “em sua homenagem o cientista Ernst-Josef Fitkau denominou um novo gênero de “Chironomidae” como “Djalmabatista”. Não é preciso lembrar que, hoje, a principal avenida da capital leva seu nome. Válida homenagem.

O doutor Moura Tapajós foi (tenho a pretensão de dizer) meu colega no Banco do Brasil. Era outro dos monstros sagrados da medicina em nossa terra. Médico de carreira naquele Banco, a todos os funcionários atendia com presteza em seu consultório,  ali na rua Lobo d’Almada. Em biografia que localizei na internet consta ter perdido “o pai aos oito anos e passou a infância com dificuldades, sendo criado pela mãe e mais quatro irmãos. Estudou nos Grupos Ribeiro da Cunha e Barão do Rio Branco. O segundo grau, cursou no Ginásio Amazonense Pedro II, onde, aos 15 anos, completou o curso.

Prossegue o relato: “Por esse tempo já havia definido sua vocação: queria ser médico. Ao terminar o segundo grau, conseguiu uma passagem na terceira classe do navio Almirante Jaceguay. Viajou para Belém, onde ingressou na Faculdade de Medicina do Pará, aos 17 anos. No Pará, cursou os dois primeiros anos, transferindo-se para a Faculdade de Recife”.            Sua contribuição foi inestimável. Fundou o Dispensário Cardoso Fontes, “onde atuou como Diretor e médico, de 1940 a 1964, como voluntário, sem receber qualquer pagamento”. Foi de sua iniciativa, a fundação do Sanatório Adriano  Jorge, hoje hospital, tendo sido ali chefe de clínica durante dez anos. O Estado lhe outorgou a Medalha do Mérito do Governo do Estado e a Medalha de Ouro do Mérito Rui Araújo, tornando-se Membro Emérito da Academia Amazonense de Medicina.

Esta breve crônica cometeria profunda injustiça se não mencionasse a figura inesquecível do doutor Comte Telles. O senhor José Martins, em texto postado na rede mundial, bem resume o perfil desse outro gigante da medicina amazonense: “Um médico que atendia tanto a família rica quanto a pobre. Fazia questão de ir à casa do paciente, não se importando com o horário. Podia ser de dia ou altas horas da madrugada, com chuva ou com sol. Não interessava se a consulta ia ser paga na hora ou depois, já que, na maioria das vezes, não cobrava nada dos pobres e ainda fornecia os remédios gratuitamente”.

Lembro-me de seu consultório na esquina das ruas da Instalação e Henrique Martins, onde, quem podia, pagava uma consulta ao preço simbólico do que hoje corresponderia a, no máximo, dois reais. Era a medicina exercida por convicção, uma verdadeira comprovação prática da aplicação concreta do juramento de Hipócrates.

Infelizmente todos já se foram. Mas esta universal cidade de Manaus os têm vivos na lembrança, tributando-lhes perenes agradecimentos.