1. Introdução: A Única Verdade que Podemos Aferir
René Descartes, ao formular cogito, ergo sum — “penso, logo existo” —, estabeleceu a única verdade indubitável: a existência do pensamento consciente como prova da existência do próprio sujeito. Tudo o mais pode ser questionado, mas o fato de que há um “eu” que pensa é incontestável.
Se tomarmos essa máxima como ponto de partida, percebemos que qualquer sistema de pensamento que nega ou relativiza a individualidade nega a própria base da realidade. E, no entanto, é exatamente isso que as ideologias coletivistas fazem: dissolvem o indivíduo dentro de estruturas teóricas que suprimem sua identidade e sua agência. A consequência desse processo não é apenas a destruição da liberdade, mas a aniquilação do próprio ser humano como ente singular.
O objetivo deste artigo é demonstrar como certas correntes ideológicas, especialmente aquelas que promovem a ideia de estruturas opressivas inescapáveis, operam para desconstruir o homem e erradicar sua identidade individual, utilizando uma falsa racionalidade para justificar a repressão.
2. A Filosofia do Coletivo Contra o Cogito
A filosofia moderna sempre oscilou entre duas forças fundamentais: o indivíduo e a estrutura social. Desde a antiguidade, os grandes pensadores tentaram equilibrar essas forças, buscando um modelo de sociedade onde a liberdade individual fosse respeitada, mas sem que isso levasse ao caos social.
No entanto, o pensamento coletivista radical rompe com esse equilíbrio e inverte a hierarquia ontológica. Se para Descartes a verdade absoluta nasce no indivíduo — “penso, logo existo” —, para as ideologias coletivistas, o indivíduo não existe por si mesmo, mas apenas como produto de uma estrutura invisível e onipresente.
Podemos dividir essa mentalidade em três grandes etapas históricas:
Primeira etapa: O Coletivismo Marxista – Marx e Engels construíram um modelo onde o indivíduo era apenas um reflexo das relações de produção. O sujeito não tinha consciência própria, mas era determinado por sua classe social. Assim, suas ideias e valores não pertenciam a ele, mas à estrutura econômica em que estava inserido.
Segunda Etapa: A Revolução Cultural e a Desconstrução da Identidade – No século XX, intelectuais como Gramsci e a Escola de Frankfurt expandiram esse conceito para além da economia. Agora, todas as instituições humanas — família, religião, moralidade, cultura — eram vistas como instrumentos de dominação. O indivíduo tornou-se não apenas um reflexo da estrutura econômica, mas um prisioneiro de um sistema opressor onipresente.
Terceira etapa: O Pós-Modernismo e a Dissolução do Sujeito – Já na contemporaneidade, autores como Foucault e Derrida aprofundaram essa visão, afirmando que não há verdade objetiva nem sujeito autônomo. Tudo é uma construção arbitrária do discurso, e o próprio conceito de “eu” seria apenas uma ilusão criada pela sociedade.
Em todas essas etapas, a conclusão é a mesma: o indivíduo é um erro, uma miragem, uma ficção que deve ser superada. O problema? Se o indivíduo é uma ficção, quem pensa? Quem age? Quem decide?
O coletivismo não responde a essa questão. Ele simplesmente elimina o sujeito e substitui seu lugar por uma “estrutura” abstrata, como se o pensamento pudesse existir sem um pensador.
3. A Estrutura Como Deus e o Totalitarismo Como Meio
Uma vez que se aceita a ideia de que o sujeito individual não tem existência própria, abre-se espaço para que qualquer atrocidade seja justificada em nome da coletividade.
Se o homem é apenas um produto da sociedade, então basta modificar a sociedade para criar um “novo homem”. Esse foi o argumento central por trás dos maiores genocídios do século XX. Stalin, Mao, Pol Pot e outros ditadores totalitários não viam seus opositores como pessoas, mas como elementos de uma estrutura burguesa, reacionária ou imperialista que deveria ser erradicada.
Os paralelos com as ideologias atuais são evidentes:
• Quando se fala em “racismo estrutural”, o que se propõe não é apenas o combate a atos concretos de racismo, mas a completa destruição de toda uma sociedade considerada inerentemente opressora.
• Quando se defende o “fim do patriarcado”, o alvo não é apenas um comportamento específico, mas a própria noção de masculinidade e feminilidade, vistas como categorias criadas para manter o poder.
• Quando se fala em “capitalismo estrutural”, o objetivo não é reformar o sistema, mas erradicá-lo completamente, mesmo que isso signifique a destruição da economia e o empobrecimento em massa.
O que une todos esses conceitos é a mesma falácia de origem marxista: a crença de que as estruturas, e não os indivíduos, são os verdadeiros agentes da história. Essa crença exonera o indivíduo de sua responsabilidade pessoal e justifica qualquer atrocidade em nome da “libertação do coletivo”.
4. O Totalitarismo Começa com a Censura Estrutural
Se o objetivo dessas ideologias é destruir o indivíduo, o primeiro passo para isso é controlar o que ele pode pensar e dizer. É aqui que entra o conceito de censura estrutural: um sistema de supressão de ideias onde o indivíduo não é proibido apenas de falar, mas até de pensar livremente.
A censura estrutural se manifesta de várias formas:
• Na China, o sistema de crédito social pune cidadãos por opiniões que contrariem o Partido Comunista.
• Na Rússia, jornalistas e opositores políticos são assassinados ou presos sob acusações genéricas de “traição” ou “desinformação”.
• Na Venezuela, veículos independentes foram banidos, e qualquer crítica ao regime de Maduro pode resultar em perseguição.
• Na Nicarágua, líderes da oposição são presos preventivamente para que não possam disputar eleições.
• Na Coreia do Norte, não há nem mesmo a ilusão de liberdade: qualquer desvio ideológico pode levar à execução.
O que todas essas práticas têm em comum? A erradicação do indivíduo como sujeito autônomo. O pensamento independente não pode existir nesses regimes porque o homem livre é o maior inimigo do coletivismo totalitário.
O Próximo Passo: A Dissolução da Verdade e da Realidade
Se a estratégia da esquerda consiste em partir de uma ideia aparentemente incontestável e utilizá-la para implementar seu projeto de destruição do indivíduo e da sociedade, o próximo passo natural desse processo é a dissolução da verdade e da própria realidade objetiva.
O controle total de uma sociedade não pode ocorrer apenas pela repressão física ou censura explícita; é preciso que as pessoas percam a capacidade de distinguir o verdadeiro do falso, o justo do injusto, o moral do imoral. Para isso, a esquerda radical se apropria de um princípio fundamental da pós-modernidade: a relativização da verdade.
5. A Desconstrução da Verdade como Ferramenta de Controle
O pensamento tradicional se baseia na ideia de que existe uma realidade objetiva e que podemos nos aproximar dela através da razão, do debate e da experiência. Esse conceito foi sendo sistematicamente desmontado pelas correntes filosóficas de inspiração marxista e pós-moderna.
• O marxismo sempre sustentou que não existe uma verdade universal, apenas a “verdade da classe”, ou seja, cada grupo social tem sua própria perspectiva e não há um critério absoluto para julgar o que é certo ou errado.
• O pós-modernismo radicalizou essa ideia, afirmando que tudo é uma construção social, incluindo a moralidade, o conhecimento e até mesmo a identidade humana.
• Essa relativização da verdade é extremamente útil para quem deseja o controle total da sociedade, pois transforma toda discordância em uma simples questão de “narrativa”.
Se não há verdade, apenas versões da realidade, então o que vale é a versão imposta por quem detém o poder.
6. A Criação da “Verdade Oficial”
Uma vez que a verdade foi relativizada, o próximo passo é a criação de uma nova “verdade oficial”, que deve ser aceita sem questionamento. Essa verdade não precisa ser baseada em fatos concretos, mas apenas em consensos artificiais criados pelo controle da mídia, das instituições e da educação.
• O uso da linguagem para redefinir conceitos: O que antes era chamado de censura passa a ser “proteção da democracia”; a imposição de privilégios de grupos identitários vira “justiça social”; a supressão de vozes contrárias se torna “combate ao discurso de ódio”.
• A substituição do método científico pela ciência ideológica: Em regimes autoritários, a ciência se torna um braço do Estado. Se um dado contradiz a narrativa oficial, ele é simplesmente ignorado ou rotulado como “desinformação”. A ciência deixa de ser um método de descoberta da verdade e passa a ser uma ferramenta de manipulação política.
• A história como instrumento de reengenharia social: Eventos históricos são reinterpretados para se encaixarem na nova “verdade oficial”. Personagens e fatos incômodos são apagados ou recontextualizados para justificar a agenda ideológica vigente.
O objetivo desse processo não é apenas moldar a opinião pública, mas criar uma população incapaz de perceber que está sendo manipulada. Se a única versão da realidade disponível é a versão oficial, a própria capacidade de questionamento é destruída.
7. A Impostura Moral e a Inversão dos Valores
O último estágio da dissolução da verdade é a inversão total dos valores morais, onde os inimigos do regime são retratados como vilões absolutos e seus aliados como heróis inquestionáveis.
• O uso de minorias como escudo moral: Qualquer crítica a um governo ou movimento de esquerda pode ser imediatamente rotulada como “ataque a minorias”, criando uma barreira moral para impedir o debate.
• A normalização da violência política: Movimentos de extrema esquerda são tratados com condescendência quando utilizam violência, pois supostamente lutam por uma causa justa. Já qualquer reação vinda do lado oposto é imediatamente criminalizada.
• O culto ao Estado como entidade suprema: Quanto mais a verdade e os valores tradicionais são desconstruídos, mais o Estado passa a ser a única referência moral e intelectual da sociedade.
Essa inversão de valores não ocorre de forma abrupta, mas sim gradativamente, de modo que a sociedade se acostume a novas definições e novos critérios de certo e errado sem perceber que está sendo reprogramada.
O Caminho para a Servidão: O Fim do Indivíduo
Quando a verdade foi dissolvida e os valores foram invertidos, o último passo é a destruição completa da individualidade. Isso ocorre de três formas principais:
8. O Coletivismo Como Única Identidade Válida
O indivíduo não é mais visto como uma entidade autônoma, mas apenas como parte de um grupo social. Sua identidade passa a ser definida por sua raça, gênero, classe econômica ou qualquer outra categoria imposta pela ideologia dominante.
• A identidade individual é eliminada: O que importa não é mais o que a pessoa pensa, mas sim de que grupo ela faz parte. Sua posição na hierarquia social passa a determinar seus direitos e deveres.
• A culpa coletiva substitui a responsabilidade pessoal: Em vez de julgar ações individuais, a sociedade passa a julgar grupos inteiros, responsabilizando certas categorias sociais por crimes históricos ou estruturais.
9. A Dependência Total do Estado
À medida que a sociedade se torna mais coletivista, o Estado assume um papel cada vez maior na vida dos indivíduos. Em regimes totalitários, essa dependência é forçada por meio de políticas como:
• Renda básica universal e subsídios massivos, que criam cidadãos dependentes do governo para sobreviver.
• Sistemas de crédito social, que punem qualquer comportamento “desviante”, como ocorre na China.
• A destruição da família, para que o Estado se torne a principal referência moral e afetiva da população.
10. A Censura como Garantia de Obediência
Por fim, quando o indivíduo perdeu sua identidade e se tornou dependente do sistema, a censura não é mais necessária porque a população já internalizou a ideologia dominante. A autocensura se torna o padrão e a própria ideia de questionamento desaparece.
11. Conclusão: O Cogito Como Última Linha de Defesa
Olhando para todo esse processo, fica claro que a esquerda não busca apenas o controle político e econômico, mas a destruição do próprio ser humano como entidade autônoma. O projeto final não é apenas o domínio das instituições, mas a aniquilação da individualidade e da capacidade humana de pensar de forma independente. Se Descartes encontrou no “Cogito, ergo sum” a única verdade inquestionável, o coletivismo radical age no sentido oposto: eliminar o pensamento individual para dissolver o próprio conceito de ser humano. E para isso, seu primeiro passo é destruir a autonomia intelectual e substituí-la pela obediência cega a um dogma.
Se há algo a ser aprendido com a história, é que a liberdade nunca é perdida de uma vez só. Ela é corroída lentamente, disfarçada de “progressismo”, “inclusão”, “combate ao ódio” e outras expressões moralmente aceitáveis, que na prática servem para restringir o pensamento crítico e consolidar a dominação ideológica. O indivíduo, sob essa lógica, deixa de ser um ente autônomo e passa a ser um mero instrumento de uma estrutura que o define, o julga e, se necessário, o silencia.
A única resposta racional a esse processo é a resistência intransigente em defesa da verdade e da liberdade de pensamento. O indivíduo é a última barreira contra a tirania, e seu enfraquecimento é o primeiro passo para qualquer projeto totalitário. Quando o direito de pensar livremente é atacado, não se trata apenas de uma disputa política, mas de uma ofensiva contra a própria realidade.
O questionamento constante, a preservação da identidade individual e a recusa em aceitar narrativas prontas são as únicas armas eficazes contra a censura estrutural e o apagamento da verdade. Se nos rendermos à lógica da mentira e do coletivismo, o destino inevitável será a escravidão mental, política e cultural.
Aqueles que não defendem o indivíduo hoje podem não ter mais um “eu” para defender amanhã.
(*) O autor é advogado, Procurador do Estado aposentado e ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas