A Distorsão da Realidade: como o sofisma do espantalho molda a percepção pública

No mundo contemporâneo, especialmente no Brasil polarizado, os sofismas têm se tornado armas retóricas amplamente utilizadas na disputa entre direita e esquerda

Desde a Antiguidade, os sofismas têm sido usados como ferramentas de persuasão, muitas vezes camuflados como verdades irrefutáveis. Sócrates, o filósofo ateniense que inspirou a tradição do pensamento crítico, dedicou boa parte de sua vida a desmascarar argumentos falaciosos, mostrando que a verdade só pode emergir do rigor do questionamento e da análise lógica. No entanto, no mundo contemporâneo, especialmente no Brasil polarizado, os sofismas têm se tornado armas retóricas amplamente utilizadas na disputa entre direita e esquerda.

Esses argumentos falaciosos, ao invés de esclarecerem, confundem, desviam a atenção e manipulam a percepção pública. Em um cenário em que a imprensa e as redes sociais desempenham um papel central na formação da opinião popular, identificar e compreender os sofismas não é apenas um exercício filosófico, mas uma necessidade urgente para o fortalecimento da democracia.

Neste artigo, exploraremos o sofisma do espantalho que é um dos sofismas mais comuns e presentes no discurso político brasileiro, ilustrando-o com exemplo prático extraído da imprensa. Faremos isso com uma perspectiva crítica, resgatando o espírito socrático e trazendo reflexões de filósofos como Aristóteles, que sistematizou os tipos de falácias, e Schopenhauer, que analisou os estratagemas da retórica no “A Arte de Ter Razão”. Ao final, esperamos fornecer ao leitor as ferramentas necessárias para identificar essas armadilhas discursivas e pensar com maior clareza diante das narrativas que dominam o debate

A Matéria da Revista Veja

Recentemente, a matéria da revista Veja, intitulada “Governo se assustou com a própria falta de credibilidade no caso do Pix”, trouxe à tona um exemplo clássico de sofisma do espantalho. O texto menciona que o governo ficou surpreso ao ver manifestações públicas de indignação sobre um suposto novo imposto vinculado ao Pix.

Porém, ao analisarmos mais profundamente, fica evidente como a questão foi desvirtuada.
No âmago do debate, de fato não havia qualquer afirmação oficial de que um novo tributo seria criado. A preocupação popular estava, na verdade, ligada à possibilidade de uma maior fiscalização por parte da Receita Federal, com o uso do Pix como ferramenta para monitorar movimentações financeiras e, consequentemente, ampliar a arrecadação do Imposto de Renda. Essa preocupação é legítima, enraizada em temores históricos quanto ao uso de tecnologias fiscais para aumentar a pressão tributária sobre os cidadãos.

Por outro lado, ao destacar que “o boato de um novo imposto não foi contido por manifestações oficiais”, a matéria constrói um espantalho. Esse recurso retórico consiste em distorcer ou exagerar a posição original das pessoas — neste caso, alegando que o descontentamento popular era fruto do medo de um novo imposto inexistente. Isso desvia a atenção da verdadeira preocupação: o impacto da fiscalização intensificada na vida cotidiana dos cidadãos, aliado ao fato de que qualquer movimentação acima de cinco mil reais seria objeto de análise pela Receita Federal.

O Sofisma do Espantalho: A Filosofia da Manipulação Retórica

O sofisma do espantalho é uma ferramenta poderosa para moldar percepções. Como bem disse Aristóteles, “o objetivo do sofista não é a verdade, mas o que parece ser a verdade.” Ao criar uma versão distorcida ou exagerada do argumento alheio, o sofista manipula a discussão para evitar enfrentar a realidade complexa e desafiadora do argumento original.

No caso do Pix, o governo e a matéria desviaram a atenção do público para o que seria um “medo irracional” de um imposto inexistente, ignorando o cerne da insatisfação popular: a preocupação com o uso da tecnologia para intensificar o controle e a arrecadação fiscal. Essa estratégia busca deslegitimar o sentimento coletivo ao classificá-lo como fruto de desinformação.

Como observou Immanuel Kant, “o esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado.” Nesse sentido, o papel do governo deveria ser o de esclarecer de forma honesta e transparente as intenções por trás da fiscalização, ao invés de criar narrativas que simplifiquem ou deturpem o descontentamento social.

A Desconfiança Popular e Suas Raízes

A indignação popular frente à possibilidade de maior fiscalização fiscal não surge do vazio. O Brasil possui um dos sistemas tributários mais complexos e regressivos do mundo. Thomas Hobbes, em Leviatã, já alertava que o excesso de intervenção estatal pode corroer o contrato social, criando um ambiente em que o cidadão vê o Estado não como um protetor, mas como um predador.

Entretanto, é esse o sentimento que emerge quando tecnologias como o Pix são associadas a uma vigilância fiscal ampliada: a percepção de que o governo pode estar ultrapassando os limites do contrato social.
Quando o governo tenta refutar um “boato” inexistente, como mencionado na matéria, ele ignora a necessidade de dialogar de forma honesta sobre os verdadeiros motivos de preocupação da população.

Essa atitude revela, como observou Nietzsche, que “a verdade raramente é amigável aos poderes estabelecidos.” Ignorar a verdade das preocupações legítimas é, portanto, uma forma de minar ainda mais a credibilidade das instituições.

O Papel do Sofisma na Fragmentação Social

O uso do sofisma do espantalho não apenas desvia o foco do debate, mas também contribui para a polarização da sociedade. Hannah Arendt advertiu que “o ideal totalitário não é a convicção, mas a desconfiança.” Ao deturpar as preocupações legítimas do povo e rotulá-las como desinformação ou paranoia, o governo alimenta a sensação de desconfiança mútua entre os cidadãos e as instituições públicas.

Essa fragmentação social não é apenas um problema político, mas também ético. John Stuart Mill, em Sobre a Liberdade, argumenta que “a verdade só pode emergir do choque entre opiniões opostas.” No entanto, quando uma das partes manipula o argumento da outra, esse choque construtivo é substituído pela confusão, enfraquecendo o tecido social e o diálogo democrático.

Conclusão

A matéria sobre o caso do Pix serve como um exemplo de como narrativas podem ser manipuladas para evitar enfrentar questões reais. O sofisma do espantalho, ao desviar o foco do debate, não apenas enfraquece a discussão, mas também subestima a inteligência do público. Como apontou Sócrates, “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida.” Do mesmo modo, um debate público não examinado, distorcido por sofismas, carece de valor para o progresso social.

O desafio, portanto, é superar as armadilhas da retórica manipulativa e buscar, como sugeriu Kant, a emancipação pela razão. Em um momento em que a confiança entre governo e sociedade está em declínio, a honestidade e a transparência são mais do que virtudes desejáveis: são pré-requisitos para a restauração da credibilidade.

Ao identificarmos e expormos sofismas como o do espantalho, damos um passo importante rumo a um debate mais honesto e ao fortalecimento das bases democráticas. Afinal, como conclui Spinoza, “a verdade é o padrão de si mesma e do falso.” Que o exame rigoroso das narrativas seja o farol que nos guie na busca pela justiça e pelo entendimento mútuo.

(*) O autor é advogado, Procurador do Estado aposentado e ex Procurador-Geral do Estado do Amazonas.