“A oração não muda Deus, mas muda aquele que ora.”
— Søren Kierkegaard
“Antes de ser uma invocação a Deus, toda prece é um chamado à nossa transformação.”
— Dalai-Lama
Introdução: Uma prece reencontrada
Algumas pessoas podem não ver sentido em refletir sobre a importância da oração no dia a dia. Mas a maioria de nós — desde a mais remota antiguidade — sempre soube, em algum momento, curvar os joelhos e suplicar por ajuda quando tudo parecia escapar ao controle. É exatamente nesse instante, quando conscientemente desistimos de controlar a realidade apenas por nossos próprios meios, que os milagres acontecem. E não porque eles desobedecem às leis do mundo, mas porque nos realinham às leis mais altas que o sustentam.
Há orações que são como faróis que nos escolhem. Elas chegam quando mais precisamos, e permanecem como se fossem parte de nós desde sempre. A Prece de Cáritas é uma dessas dádivas. Foi a primeira oração que recebi das mãos da querida Ana Favero, em um momento de provação familiar. E tornou-se ainda mais essencial quando, há cinco anos — neste mesmo mês de abril — fui internado com Covid e pedi a meus familiares que a rezassem por mim.
Desde então, ela passou a habitar meu cotidiano espiritual. Rezo-a diariamente, ao menos duas vezes por dia, junto com outras preces igualmente importantes, como quem retorna a uma fonte viva de serenidade e sentido.
Recentemente, essa oração me foi reenviada com carinho e intenção pelo querido Dr. José Alves Pacífico, que a compartilhou ao amanhecer com seu “Círculo de Amizades”. Sua mensagem foi seguida de uma troca afetuosa que me tocou profundamente. Percebi, naquele instante, que era hora de voltar à oração não apenas com o coração, mas com a mente filosófica desperta.
Este artigo nasce desse reencontro: da prece rezada, da prece compartilhada e, agora, da prece refletida.
A Prece de Cáritas (como eu a rezo).
Deus nosso Pai, que Sois todo Poder e Bondade, dai força àqueles que passam pela provação, dai Luz àqueles que buscam a Verdade, ponde no coração dos Homens a Compaixão e a Caridade.
Deus, dai ao viajante a Estrela Guia, ao aflito a Consolação e ao doente o repouso.
Pai, dai ao culpado o arrependimento, ao espírito a verdade à criança o guia, e ao órfão o pai.
Que a Vossa Bondade se estenda sobre tudo o que criastes.
Piedade, Senhor, para aqueles que não Vos conhecem, e Esperança para aqueles que sofrem.
Que a Vossa Bondade permita hoje aos Espíritos Consoladores derramarem, aqui e em toda parte, a Paz, a Esperança e a Fé.
Deus,um raio, uma centelha do Vosso Amor pode abrasar a Terra!
Deixai-nos beber na Fonte dessa Bondade fecunda e infinita, e todas as lágrimas secarão, todas as dores acalmar-se-ão.
E nós, em um só coração, um só pensamento, subiremos até Vós, num grito de reconhecimento e de Amor.
Como Moisés sobre a montanha, nós Vos esperamos com os braços abertos.
Oh! Poder, oh! Bondade, oh! Beleza, oh! Perfeição,
E queremos de alguma sorte merecer a Vossa Misericórdia…
Deus, dai-nos força!
Ajudai o nosso progresso, a fim de subirmos até Vós.
Dai-nos a caridade pura e a humildade;
Dai-nos a fé e a razão,
Dai-nos a simplicidade, ó Pai, que fará de nossas almas o espelho onde há de se refletir a Vossa Divina Imagem!
Que assim seja!
I. A oração como caminho filosófico
Søren Kierkegaard e o Dalai-Lama, embora oriundos de tradições espirituais profundamente distintas — o cristianismo protestante existencial e o budismo tibetano compassivo — convergem em uma mesma verdade fundamental: a oração transforma quem a profere. Ela não existe para alterar os desígnios de Deus ou manipular os fluxos da realidade, mas para lapidar o sujeito que ora. Ela não é mágica, mas abertura. Não é fuga da vida, mas encontro com o real — e com o que nele há de eterno.
Kierkegaard via a oração como o “exercício da eternidade no tempo”. Orar, para ele, é entrar em relação direta com o absoluto, mas é também submeter-se ao silêncio que nos revela quem somos. O Dalai-Lama, por sua vez, ensina que toda oração é, antes de tudo, um chamado à nossa própria transformação interior — porque, se Deus é amor, e o amor é relação, então toda prece que não nos transforma em canais desse amor é apenas ruído piedoso.
Mas é sobretudo na tradição que me formou — a filosofia grega, o pensamento judaico, o cristianismo profundo e as sabedorias orientais — que reconheço na oração um caminho dialético de elevação. A Prece de Cáritas é um exemplo luminoso dessa jornada: ela não nos lança diretamente ao êxtase, mas nos conduz com passos bem medidos. Começa no chão da dor humana, atravessa o clamor ético e culmina na contemplação serena do divino.
É o que Platão chamaria de anámnesis: a recordação do que a alma já intui, mas esquece. É o que Aristóteles chamaria de cultivo das virtudes na práxis diária da alma. Também é o que Tomás de Aquino chamou de “oração purificada pela razão” e o que Martin Buber chamou de “presença dialogal” — o momento em que o homem já não fala sobre Deus, mas fala com Deus.
Na tradição cabalística, a oração é vista como um instrumento de Tikun Olam — reparação do mundo. Mas essa reparação começa dentro: Tikun hanefesh, a reparação da alma. O orante é aquele que deseja purificar os próprios vasos para tornar-se digno de receber e refletir a luz divina.
No Bhagavad Gita, Krishna diz a Arjuna: “Aquele que me busca com devoção, mesmo em meio à dor, encontrará em mim a paz que não se altera.” Já Lao-Tsé ensina que aquele que silencia por dentro e alinha sua respiração ao Tao não precisa pedir — apenas se harmonizar. E Confúcio, mais pragmático, lembra que orar sem transformar as próprias ações é como semear em solo árido.
A Prece de Cáritas, quando lida com o coração desperto e o pensamento elevado, nos guia por esse percurso: ela parte da condição humana vulnerável e nos conduz, passo a passo, à configuração do espírito com o divino. Seu movimento é o de um espelho que vai sendo cuidadosamente polido — até que a alma, purificada pela simplicidade, possa refletir a imagem Daquele que a transcende.
II. Análise filosófica verso a verso
“Deus nosso Pai, que Sois todo Poder e Bondade”
A oração inicia com uma invocação que une duas dimensões essenciais do divino: poder e bondade. Aqui já encontramos uma tensão filosófica fundamental: o poder, por si só, é ambíguo — pode construir ou destruir. Mas quando aliado à bondade, adquire direção ética.
Na tradição aristotélica, o bem é aquilo a que todas as coisas naturalmente tendem. Deus, como ato puro e fim último, é identificado com o Bem em si. A prece, ao reconhecê-Lo como “todo Poder e Bondade”, antecipa uma confiança não no arbítrio divino, mas na justeza do universo moral.
Ao chamá-Lo de “Pai”, a prece também adota um tom relacional: não estamos diante de uma força impessoal, mas de uma presença que cuida, acompanha, guia — o “Tu Eterno” de Martin Buber. Deus não é objeto de crença, mas sujeito de encontro.
“Dai força àqueles que passam pela provação”
Aqui não se pede que a provação desapareça, mas que a força se manifeste dentro de quem a atravessa. É uma súplica que carrega o espírito estoico: não fugir da dor, mas formar-se nela. Para os estoicos, a virtude se revela justamente na adversidade; e para Viktor Frankl, é no sofrimento inevitável que o ser humano pode encontrar sentido. Mas é preciso ir além: nem o estoicismo, nem a Cabala, nem qualquer tradição espiritual séria existe para nos blindar contra a dor ou atender aos nossos devaneios de conforto. Elas não foram criadas para perpetuar nossas zonas de conforto — ao contrário, elas existem para nos ensinar a crescer mesmo quando somos arrancados delas.
Não pedi para perder minha primeira filha, que nasceu prematura. Não pedi para adoecer de Covid, nem por tantas outras dores que atravessaram minha vida com a força de um corte profundo. Mas hoje — com gratidão serena e sem qualquer traço de masoquismo — reconheço que essas experiências me ensinaram o que nenhum livro poderia transmitir: a força silenciosa que nasce da alma quando ela decide não se revoltar, mas compreender.
Essa compreensão não é resignação, é sabedoria. É o que os mestres cabalistas chamam de Tikun: transformar a ferida em fonte, o tropeço em subida, o sofrimento em escola. A oração, ao pedir força, nos educa para isso: não para eliminar a dor, mas para atravessá-la com dignidade e sentido. É uma força que não se impõe — mas se revela. Que não grita — resiste em silêncio. E que transforma a provação em oportunidade de elevação interior.
Essa compreensão não é resignação, é sabedoria. É o que os mestres cabalistas chamam de Tikun: transformar a ferida em fonte, o tropeço em subida, o sofrimento em escola. A oração, ao pedir força, nos educa para isso: não para eliminar a dor, mas para atravessá-la com dignidade e sentido. É uma força que não se impõe — se revela. Que não grita — resiste em silêncio. Que não pede garantias — se oferece ao mistério com coragem.
E é justamente essa atitude que, com a devida licença e sem demérito de nenhum outro povo ou tradição, reconheço com profunda admiração na trajetória histórica do povo judeu. Uma espiritualidade que não idealiza a ausência de sofrimento, mas transforma a dor em testemunho, a dispersão em identidade, e a provação em fidelidade. Daí meu profundo respeito. Não por uma suposta perfeição, mas pela capacidade milenar de responder ao sofrimento com sentido, memória e transcendência.
“Dai luz àqueles que buscam a Verdade”
A luz é um dos símbolos mais antigos e universais do conhecimento. Desde os mitos ancestrais até os tratados filosóficos, ela representa aquilo que dissipa as trevas da ignorância, que revela o que estava oculto, que desperta a consciência para aquilo que é — e não apenas para aquilo que parece ser. Mas a prece não pede luz a todos indistintamente: ela a reserva àqueles que a buscam. E essa escolha não é casual. Buscar a Verdade é colocar-se em marcha contra as sombras — as externas e, sobretudo, as internas. É renunciar à ilusão confortável para abraçar a realidade com tudo o que ela tem de exigente. Por isso, no pensamento filosófico, essa busca sempre foi considerada a mais nobre das jornadas humanas.
No Oráculo de Delfos, gravado no templo de Apolo, lia-se o imperativo: “Conhece-te a ti mesmo.” A luz, aqui, não é algo que se recebe passivamente, mas algo que se conquista pela via do autoconhecimento. A Verdade, diz o oráculo, começa dentro. Platão, na Alegoria da Caverna, vai além: mostra que a Verdade é como o Sol — ofusca ao primeiro contato, fere os olhos habituados ao escuro, desorienta quem por muito tempo viveu entre sombras. Mas é ela que permite ver as coisas como realmente são. E é por isso que muitos preferem as aparências à realidade. A luz exige coragem.
Essa luz, porém, não é apenas racional. Ela é também espiritual — e aqui a Cabala oferece uma chave preciosa. Na tradição cabalística, a luz (Or) é a emanação direta do divino — um reflexo do Ein Sof, o Infinito que tudo sustenta. Mas essa luz não pode ser recebida sem preparo: os vasos precisam estar purificados, abertos, harmonizados com o propósito. Aquele que busca a Verdade torna-se, então, um receptáculo em processo de ajuste, um ser que se esvazia das ilusões para poder acolher o fluxo luminoso da Realidade superior. A luz, nesse sentido, não apenas revela o caminho — é o próprio caminho. É o Tikun em ação: o processo contínuo de reparação, de elevação, de reencontro com a origem.
A prece, ao pedir luz para quem a busca, não está pedindo milagre — está pedindo merecimento. Está dizendo, em silêncio: que a Verdade ilumine aqueles que a desejam não por vaidade, mas por amor. E que essa luz — intelectual, existencial e espiritual — seja suficiente para guiar, para revelar, e sobretudo, para salvar.
“Ponde no coração dos Homens a Compaixão e a Caridade”
Este pedido desloca o eixo da oração do sujeito para o outro. Depois de clamar por força para suportar e luz para compreender, a prece se volta para as virtudes relacionais, que são a prova viva de qualquer espiritualidade autêntica: compaixão e caridade. A oração educa, com ternura e rigor, o nosso afeto moral. Ela nos lembra que nenhuma iluminação é completa se não se traduz em gesto; que a busca pelo divino se consuma — não em êxtase individual — mas na forma como nos oferecemos ao mundo.
A compaixão, segundo Schopenhauer, é a única base verdadeiramente sólida da moral, pois nasce do reconhecimento imediato da dor do outro como dor nossa. Já Emmanuel Levinas afirma que é no rosto do outro — sobretudo no rosto do que sofre — que a ética começa. A compaixão não é um afeto passageiro, mas um chamado ontológico que desinstala o eu de seu trono egocêntrico.
No Budismo, especialmente no ensinamento do Buda Shakyamuni e na prática do Bodhisattva, a compaixão (karuna) não é apenas um sentimento nobre: é o fundamento de todo o caminho espiritual. O Bodhisattva — aquele que abdica da libertação completa para aliviar o sofrimento dos demais — encarna esse princípio: ninguém se salva sozinho. Meditar não é isolar-se, é expandir a consciência até que ela se torne solidária. Em termos mais profundos, a compaixão é o próprio reconhecimento da interdependência entre todos os seres — a essência do Dharma.
A caridade, por sua vez, no pensamento paulino, é a mais elevada das virtudes: “Ainda que eu falasse a língua dos anjos… se não tiver caridade, nada serei.” (1 Cor 13:1). Mas é preciso compreender que a caridade aqui não é assistencialismo. Não é dar o que sobra. É entrega ativa do amor, é disposição interior de doar-se com inteireza. É a caridade de quem escuta, de quem orienta, de quem se importa, de quem age.
Ao pedir que essas duas virtudes sejam colocadas no coração dos homens, a oração afirma algo radical: que a espiritualidade verdadeira não se mede pela quantidade de preces, mas pela qualidade dos vínculos que ela inspira. A prece bem feita não termina em si. Ela transborda. Ela transforma o coração em ponte entre o humano e o divino — não por glória própria, mas por amor ao outro.
“Dai ao viajante a Estrela Guia, ao aflito a Consolação e ao doente o repouso.”
Este verso reúne três arquétipos universais da existência: o viajante, o aflito e o doente — símbolos da condição humana em movimento, em dor e em fragilidade. Cada um deles representa um aspecto do drama humano: o viajante busca sentido, o aflito busca alívio, o doente busca descanso. E a oração responde a cada um com aquilo que mais profundamente necessitam: direção, consolo e paz.
A estrela-guia é um símbolo ancestral do norte espiritual, da orientação superior que não se impõe com violência, mas brilha com constância silenciosa. Remete à Estrela de Belém, que guiou os magos ao encontro do Verbo encarnado; mas também à luz que emerge nas grandes obras da literatura espiritual, como no início da Divina Comédia, quando Dante se perde “numa selva escura” e precisa reencontrar o caminho da alma.
Sócrates, ao propor que a filosofia é um cuidado de si, nos lembra que toda existência autêntica começa com uma pergunta: para onde estou indo? Nesse sentido, a oração se faz bússola: ela não dá as respostas prontas, mas orienta o caminhar.
É aqui que a sabedoria do Taoísmo amplia a visão: segundo Lao-Tsé, “um bom viajante não tem planos fixos e não está com pressa de chegar”. O Tao — o Caminho — não é um itinerário com mapas definidos, mas um fluxo que se revela ao passo de quem caminha com humildade e atenção. A estrela-guia, então, não apenas aponta a direção, mas educa o olhar para ver o invisível, para confiar no ritmo da própria travessia.
Ao aflito, deseja-se consolação — não como fuga da dor, mas como presença amorosa no meio dela. Há aqui um eco claro do Budismo: a vida contém sofrimento, e a verdadeira compaixão não é eliminar esse fato, mas acolhê-lo com sabedoria. Consolar não é distrair, é estar junto — é oferecer sentido mesmo quando a solução não se apresenta.
Ao doente, por fim, deseja-se repouso — e essa palavra carrega uma densidade espiritual profunda. Não se fala em cura imediata, mas em descanso. Em paz no corpo e na alma. O repouso é o retorno à origem, ao silêncio, à serenidade que a agitação nos rouba. Como ensinava Epicteto, não controlamos os acontecimentos, mas podemos escolher como nos posicionamos diante deles. O repouso é, portanto, mais do que alívio: é a harmonia interior de quem já não luta contra o inevitável, mas caminha com ele, sem se entregar ao desespero.
“Pai, dai ao culpado o arrependimento, ao Espírito a verdade, a criança o guia, e ao órfão o pai.”
Neste verso, a oração se desdobra em quatro súplicas distintas, mas profundamente conectadas por um fio de justiça regeneradora. Não se trata de retribuição, mas de recondução. Cada figura humana citada aqui representa uma necessidade arquetípica, e a prece responde a cada uma delas com um dom que não julga, mas restaura.
Ao culpado, não se pede punição, mas arrependimento — e isso revela uma teologia elevada, que se alinha ao pensamento de Santo Agostinho, para quem o arrependimento não é autopunição, mas volta ao eixo. É a alma reencontrando sua origem, como o filho pródigo que não retorna por medo, mas por saudade da casa. Em Kierkegaard, o arrependimento marca o momento mais íntimo da existência — aquele em que o indivíduo se reconhece limitado diante do Infinito e, ainda assim, se abre ao perdão que o transcende.
Mas há mais. O arrependimento verdadeiro exige liberdade interior, consciência desperta e humildade ativa. Ele não brota da culpa que paralisa, mas da verdade que liberta. É o início da transformação ética. O erro não é negado, mas reconhecido como ponto de partida para algo maior. O culpado torna-se, assim, um buscador do Bem — não por decreto, mas por escolha íntima.
Ao Espírito, a oração pede a verdade — e aqui está uma das petições mais exigentes. Porque a verdade, ao contrário do que se pensa, não é um dado, mas uma conquista. E uma conquista arriscada. A verdade espiritual, filosófica, existencial, não se oferece de forma bruta; ela exige maturidade para ser recebida, coragem para ser sustentada, e sabedoria para ser traduzida em vida.
Platão já advertia que muitos não suportam a verdade, como ocorre com o prisioneiro da caverna ao sair para a luz. A Cabala ensina que o Espírito precisa estar pronto para acolher a luz do Or Ein Sof, pois a verdade recebida antes da hora pode se tornar ruína. E Simone Weil acrescenta: “a verdade é a radiação de Deus; e por isso é preciso preparar-se em silêncio para recebê-la.”
À criança, pede-se um guia. Isso não significa condicionamento, mas formação ética, presença adulta, referência simbólica. A infância é o terreno onde as sementes do caráter são lançadas. Como lembrava Aristóteles, a virtude é adquirida pelo hábito — e esse hábito começa a ser modelado desde cedo. Jean Piaget via na interação com o outro e na internalização de normas a base da autonomia moral. E o judaísmo tradicional reafirma: “ensina a criança no caminho em que deve andar, e até quando for velho, não se desviará dele.”
Guiar a criança é mais do que protegê-la — é dar-lhe visão. É educar sem esmagar, corrigir sem humilhar, elevar sem enclausurar. O guia é o adulto que se compromete com o futuro que não verá — e por isso mesmo, torna-se coautor do mundo que virá.
Ao órfão, finalmente, deseja-se o pai — e essa súplica encerra uma das mais belas expressões de solidariedade espiritual da prece. O órfão representa o abandono absoluto, a perda do pertencimento, a quebra da aliança primária. A oração, ao pedir que o órfão encontre o pai, não está apenas falando da biologia — mas da necessidade humana de vínculos profundos, de amparo, de filiação existencial.
Emmanuel Levinas nos lembra que a ética começa no rosto do outro que nos interpela, e que nossa responsabilidade não nasce da escolha, mas da presença do outro que nos chama. A paternidade simbólica aqui evocada é, portanto, a mais elevada forma de responsabilidade: é acolher como filho aquele que a vida deixou à margem.
Juntas, essas quatro súplicas desenham uma espiritualidade do cuidado, da reconstrução, da reparação. O culpado que encontra arrependimento, o espírito que se alinha à verdade, a criança que é orientada, o órfão que é amparado — todos apontam para um mundo reconciliado, onde o divino se manifesta menos na punição e mais na restauração do vínculo perdido.
No trecho acima, a oração se torna ato de justiça amorosa — e de profundo humanismo espiritual.
“Que a Vossa Bondade se estenda sobre tudo o que criastes”
Neste verso pulsa o coração do universalismo espiritual: a bondade de Deus não é seletiva, não conhece favoritismos nem fronteiras. Ela é expansiva, irradiadora, integradora — como o Sol, que ilumina justos e injustos, santos e pecadores, crentes e céticos, sem exigir nada em troca.
Desde menino, ouvia meu pai repetir, com uma sabedoria simples e profunda: “O sol nasce para todos.” Essa frase, que à primeira vista pode parecer apenas um provérbio popular, carrega em si uma cosmovisão inteira. Ela afirma, com palavras acessíveis, o que tantos filósofos e místicos ensinaram: que a luz não discrimina, porque a fonte que a gera é amor puro. E que nossa missão não é controlar essa luz, mas tornar-nos dignos de espelhá-la.
É nesse espírito que o pensamento de Spinoza se aproxima desta súplica. Para ele, Deus não está fora do mundo, mas é a própria substância infinita que o sustenta. Tudo o que existe é expressão da essência divina — o que implica que não há criação sem dignidade ontológica. Estender a bondade divina sobre tudo o que foi criado é reconhecer que o ser, por si só, já é portador de valor.
Essa compreensão também se alinha à ética ecológica contemporânea: uma espiritualidade que não se limita ao humano, mas reconhece a sacralidade do cosmos, a interdependência de todas as formas de vida. Bondade, aqui, é mais do que um atributo moral — é uma força cósmica de preservação, cuidado e reciprocidade.
Pedir que essa bondade se estenda sobre “tudo o que criastes” é, assim, um ato de reverência diante da vida como um todo. É declarar que nada — absolutamente nada — está fora do alcance da misericórdia divina. É, em última instância, um convite à reconciliação com o mundo e com todas as criaturas que nele habitam.
“Piedade, Senhor, para aqueles que não Vos conhecem, e Esperança para aqueles que sofrem.”
Neste ponto, a prece toca duas realidades que exigem profunda empatia: a ignorância espiritual e o sofrimento existencial. Mas o faz sem julgamento. Aos que não conhecem a Deus, não se pede punição — mas piedade.
É um gesto de grandeza: reconhecer que o desconhecimento pode ser fruto da dor, da cultura ou da história, e não de malícia. Como dizia Sócrates, ninguém erra voluntariamente. E como ensinou o Cristo no calvário:
“Pai, perdoai-lhes, pois não sabem o que fazem”.
Aos que sofrem, deseja-se esperança — não a falsa esperança que nega a realidade, mas a esperança ativa, que move, aquece, sustenta. Para Gabriel Marcel, a esperança é o contrário da resignação: ela é uma fidelidade ao invisível, um compromisso com o porvir.
A oração mostra, aqui, que a piedade e a esperança são irmãs: uma vê com compaixão, a outra caminha com fé.
“Que a Vossa Bondade permita hoje aos Espíritos Consoladores derramarem, aqui e em toda parte, a Paz, a Esperança e a Fé”
Este trecho é uma súplica por mediação espiritual — os “Espíritos Consoladores” são, simbolicamente, as forças invisíveis que auxiliam o humano em sua jornada interior. Mas, em leitura filosófica, eles também podem representar as virtudes encarnadas nos gestos humanos: cada um de nós pode ser, a seu modo, um espírito consolador.
As quatro palavras invocadas — paz, esperança e fé — formam um quadrado de sustentação espiritual. São as colunas de uma alma saudável.
* Paz, como harmonia entre razão e desejo (estoicos).
* Esperança, como fidelidade ao futuro (Marcel).
* Fé, como confiança no sentido da existência (Heidegger).
A oração não deseja apenas que essas virtudes cheguem a quem reza, mas “aqui e em toda parte” — uma ética universal, uma espiritualidade para todos.
Na minha própria travessia, especialmente durante a internação por Covid, recebi incontáveis Espíritos Consoladores. Alguns vieram sob a forma do amor familiar, outros como gestos silenciosos de cuidado, outros ainda como oração contínua e presença moral. Minha esposa Tricia, meus filhos Beatriz e Luiz Eduardo, a família de Tricia — especialmente minha sogra Vania Tadros, que rezou por mim com a fé inabalável dos que sustentam o invisível — e a prima-irmã Kelly Tadros, que me indicou o mestre de Reiki e terapeuta Daniel Holanda, foram anjos humanos que estiveram ao meu lado com ternura, constância e força.
Lembro com reverência do querido Beto Nicolau, que velou pessoalmente por mim e por tantos pacientes da SAMEL durante aquele calvário silencioso que atravessamos juntos. E ainda os meus filhos do coração, Fábio Garcia e Fábio Veras, além de tantos amigos e colegas de trabalho que deixo de mencionar aqui — não por falta de gratidão ou afeto, mas para não estender esta lista a ponto de duplicar o tamanho deste artigo, que, como de costume, começou pequeno… e já vai se revelando no tamanho justo das almas pacientes que o leem com atenção.
“Deus, um raio, uma centelha do Vosso Amor pode abrasar a Terra!”
Neste ponto, a prece se exalta poeticamente — e com razão. Uma centelha de Amor pode incendiar o mundo. Não com destruição, mas com transfiguração. Aqui talvez resida a imagem mais poderosa da oração: o Amor como fogo criador, redentor, transformador.
No Banquete de Platão, o amor (éros) é o movimento ascendente da alma em direção ao Belo — uma força que nos arranca do imediato e nos projeta para o eterno. Na Cabala, o fogo é símbolo do Or Ein Sof — a luz do Infinito — cuja emanação desce pela Árvore da Vida, percorrendo as sefirot até alcançar Malkuth, o reino, o mundo material. Cada centelha que desce carrega consigo o poder de restaurar o elo entre o céu e a terra, entre o divino e o humano.
Essa centelha é mais do que um fragmento: é a condensação do próprio Amor original — oculto no alto, mas sempre pronto a se revelar quando encontra um recipiente digno, um coração aberto. Seu destino não é o espetáculo, mas o Tikun: a reparação do que foi quebrado, a cura do que se perdeu, a reintegração do que parecia irremediavelmente disperso.
Quando a oração afirma que uma única centelha pode abrasar a Terra, ela evoca esse mistério: o Amor, mesmo em sua menor dose, contém a potência da totalidade. Assim como uma pequena emanação do Ein Sof percorre os mundos e toca Malkuth, também um gesto de amor verdadeiro — vindo de Deus ou encarnado em nós — é capaz de restaurar inteiros sistemas feridos.
Mas para que isso ocorra, é preciso que essa centelha encontre morada: vasos reconstruídos, almas alargadas, corações suficientemente esvaziados de si mesmos para acolher o que vem do Alto. Pois, como ensina a Cabala, o Amor não irrompe onde impera o ego — ele flui onde há espaço, silêncio e escuta.
“Deixai-nos beber na Fonte dessa Bondade fecunda e infinita, e todas as lágrimas secarão, todas as dores acalmar-se-ão.”
Este verso é um convite ao retorno à origem — à Fonte — símbolo ancestral da plenitude, da nutrição espiritual, do reencontro com o que é eterno. Beber dessa fonte não é um gesto físico, mas um ato interior de reconexão com o sentido do ser. A Bondade aqui não é adjetivo de Deus: é o próprio nome da fonte, o núcleo do qual tudo emana e para o qual tudo retorna.
Na filosofia clássica, Platão já falava da fonte do Bem como aquilo que transcende até mesmo o Ser — o sol inteligível que torna possível o conhecimento e a vida. Na Cabala, essa fonte é o Ein Sof, cuja luz se derrama em cascata pelos mundos, sempre desejando restaurar, purificar e elevar. Beber dessa Bondade é sintonizar-se com essa energia — é alinhar o desejo humano ao fluxo do divino.
Essa Bondade é dita fecunda e infinita — duas qualidades que se completam: fecunda, porque gera vida onde tudo parece estéril; infinita, porque não se esgota, mesmo quando parece ausente. Quando se bebe dessa fonte, não se obtém fuga da dor, mas algo ainda mais elevado: um olhar que compreende, uma alma que se aquieta, uma lágrima que se recolhe sem amargura.
Secar as lágrimas e acalmar as dores não significa eliminá-las — mas dar-lhes sentido. Como ensinava Viktor Frankl, quem tem um porquê, suporta quase qualquer como. E como ensinam os místicos de todas as tradições, a dor só se dissolve quando é acolhida na luz do sentido maior que a transcende.
“E nós, em um só coração, um só pensamento, subiremos até Vós, num grito de reconhecimento e de Amor.”
Este é o ponto em que a oração deixa de ser apenas súplica e se transforma em ascese: um movimento da alma em direção ao Alto, não mais marcada apenas pela dor, mas agora unificada pelo amor e pela gratidão. É a elevação consciente — não solitária, mas comunitária: “em um só coração, um só pensamento”. A espiritualidade aqui já não é intimista, mas comunal; a salvação não é individualista, mas solidária.
Na tradição estoica e na filosofia de Marco Aurélio, a razão humana é uma centelha do Logos universal — e por isso, quando o coração e o pensamento se unificam no bem, eles se reconectam ao princípio que os gerou. Na Cabala, é neste ponto que a alma desperta atinge o Yechidah, o grau de unidade plena com a centelha divina interior. E no cristianismo místico, como em Mestre Eckhart ou São João da Cruz, a alma unificada clama não por favor, mas por fusão — por voltar ao seio do Amor que a criou.
O grito que se ouve aqui não é o da aflição, mas o do reconhecimento — e essa palavra carrega grande peso. Reconhecer é mais do que saber. É lembrar-se do que se havia esquecido, é identificar no Outro aquilo que nos revela. É o reencontro entre criatura e Criador, entre a centelha e o Fogo. E esse reencontro se dá não com palavras teológicas, mas com o mais nobre dos afetos: o Amor.
Esse Amor não é carência, não é desejo de posse — é movimento de retorno. Amor que sobe, porque antes já desceu. Amor que reconhece, porque já foi reconhecido. Amor que clama, não para pedir, mas para agradecer por ter sido tocado, curado, redimido. É a prece que se transforma em cântico. A lágrima que se converte em luz. A alma que se levanta — não mais para fugir da dor, mas para abraçar a plenitude.
“Como Moisés sobre a montanha, nós Vos esperamos com os braços abertos.”
Vamos a ele, Jorge, com todo o peso simbólico e filosófico que esse verso carrega — especialmente em diálogo com a tradição mosaica, a mística da espera e o simbolismo da montanha:
“Como Moisés sobre a montanha, nós Vos esperamos com os braços abertos.”
Esta imagem transporta a oração para um território sagrado e arquetípico: a montanha como lugar de revelação, e Moisés como símbolo da escuta absoluta. A montanha, desde os tempos mais antigos, é metáfora do que está entre o céu e a terra, entre o humano que sobe e o divino que desce. É ali que o tempo se suspende, o ruído se cala e o espírito se abre.
Moisés sobe ao Sinai para receber não apenas mandamentos, mas sentido, aliança, presença. E sobe só. Mas não se isola por egoísmo: retira-se para que, ao voltar, traga ao povo não a opinião dos homens, mas a palavra de Deus. Esperar como Moisés é, pois, esperar com fé, com vigilância, com os braços abertos não para exigir, mas para acolher.
Na Cabala, o Sinai representa o ponto máximo de hitgalut — revelação. O lugar em que o Ein Sof se faz palavra, e a palavra se faz caminho. É o ponto em que o invisível se revela, não por força, mas por disponibilidade interior. E os braços abertos são o gesto universal da rendição consciente: o orante que já não luta contra Deus, mas se entrega ao que vier Dele.
Na filosofia grega, Heráclito disse que “a natureza ama esconder-se”. E de fato, o divino muitas vezes se retira para que aprendamos a buscá-Lo. A imagem de Moisés, portanto, é a imagem do ser humano em sua forma mais elevada: atento, expectante, receptivo, humilde e inteiro diante do Mistério.
Esperar com os braços abertos é também assumir uma postura de confiança radical — o oposto da ansiedade, da pressa, do cálculo. É estar presente com todos os sentidos, não como quem quer conquistar, mas como quem se oferece para ser transformado.
“Oh! Poder, oh! Bondade, oh! Beleza, oh! Perfeição”
Aqui a prece assume o tom da adoração contemplativa. Já não suplica, já não instrui — invoca. E invoca não uma lista de atributos abstratos, mas quatro epifanias do divino: Poder, Bondade, Beleza e Perfeição. Cada palavra é uma nota vibrante de um acorde espiritual que não se explica, se contempla. É o momento em que a alma, tendo subido até a presença, já não quer pedir — quer apenas nomear o indizível com as palavras mais altas que conhece.
Esse tipo de invocação é típico das grandes tradições místicas: a repetição exclamativa não é redundância, é insistência amorosa, é o ritmo da alma que se rende. Assim oraram os salmistas, os sufis, os padres do deserto, os mestres orientais diante do inefável.
* Poder, aqui, não é dominação. É potência criadora, como em Aristóteles: o motor imóvel que move sem ser movido, que gera sem esgotar. É a força que sustenta o ser no seu fundamento.
* Bondade, no pensamento de Tomás de Aquino, é o reflexo da essência divina na ordem da criação. Tudo o que é verdadeiramente bom participa da natureza de Deus — e só é bom porque antes é doação.
* Beleza, como ensina Plotino, é aquilo que brilha por si — que não precisa justificar-se, porque resplandece. A beleza é o chamado silencioso à transcendência. O mundo é salvo pela beleza, disse Dostoievski. E na oração, ela aparece como face visível do invisível.
* Perfeição é a plenitude. É aquilo que nada mais requer, porque já é completo. Em Hegel, é o Espírito que retorna a si mesmo após atravessar o tempo. Na Cabala, é o mundo restaurado — o Tikun pleno, em que as centelhas retornam ao todo.
Ao invocar essas quatro realidades — Poder, Bondade, Beleza e Perfeição — a prece se curva e se eleva ao mesmo tempo. Ela não descreve Deus. Ela o saúda. Ela o reconhece, não como objeto de crença, mas como presença que já se impôs pelo amor.
“E queremos de alguma sorte merecer a Vossa Misericórdia…”
Este verso é um sussurro de humildade entre duas elevações. Após invocar os mais altos atributos do divino, o orante se volta para si mesmo — e reconhece, com sinceridade desarmada, a distância entre aquilo que contempla e aquilo que é. Não se exige misericórdia, nem se a supõe automática. Pede-se que ela venha como resposta a um esforço de merecimento — ainda que esse merecimento, por definição, seja sempre imperfeito.
Há aqui uma compreensão fina da natureza da misericórdia: ela não é direito, é dom. E, como tal, não anula a justiça, mas a transcende. É a justiça temperada pela compaixão, como ensinava Tomás de Aquino. É o gesto que oferece espaço ao arrependimento, sem desprezar a verdade. É o toque de Deus na miséria humana, como expressa a própria etimologia latina da palavra: misericordia, o “coração voltado ao miserável”.
O desejo de “merecer” a misericórdia não se refere a um cálculo meritocrático, mas a um movimento interior de dignificação. O orante não quer apenas ser perdoado — quer transformar-se de modo a estar à altura do perdão que busca. Essa é a postura de quem compreendeu que a graça não pode ser exigida, mas que se prepara o terreno da alma para recebê-la.
Essa ideia ressoa fortemente na tradição judaica, sobretudo no conceito de teshuvá — o retorno. Retornar a Deus não é apenas esperar clemência, mas recalibrar o coração, realinhar a intenção, restaurar a aliança. Na Cabala, o vaso só pode conter a luz se for previamente purificado. E no cristianismo, o filho pródigo não apenas volta — reconhece sua indignidade, e é justamente esse reconhecimento que o torna digno de ser abraçado.
Ao dizer “de alguma sorte”, a oração também revela sua sabedoria: ela não presume compreender os critérios do divino. Não quer determinar as condições, apenas expressar o anseio sincero de ser digno do Amor que pede. É, ao mesmo tempo, reverência e esperança. É o ser humano ajoelhado diante do mistério, mas com os olhos erguidos pela confiança.
“Dai-nos a Força no progresso para subir até Vós”
Este verso retoma a imagem da subida espiritual — mas o faz com rara lucidez: não se pede a chegada, mas a força para o caminho. Não se pede que o cume nos seja dado, mas que nos seja concedido o vigor de subir. Aqui, a oração se alia à mais nobre das filosofias: aquela que reconhece que o divino não se alcança por privilégio, mas por esforço, disciplina, purificação interior.
A palavra “progresso” é decisiva. Ela desfaz a caricatura de que a fé é estagnação. Pelo contrário: a fé é movimento vertical da alma, é ascensão que se dá no tempo, mas que aponta para o eterno. Em Aristóteles, a virtude é aperfeiçoamento contínuo da disposição da alma para o bem. Em Hegel, o Espírito se realiza dialeticamente, pela superação progressiva do imediato. E na tradição judaica, subir é verbo sagrado — aliyah não é apenas ir a Israel, mas elevar-se em direção à fonte.
Mas esse progresso não é individualista nem técnico — é progresso espiritual, ético, existencial. É a coragem de deixar para trás o que é pequeno, e a humildade de saber que ainda se está a caminho. O progresso aqui é entendido como caminho interior, como conversão constante, como exame de consciência que não se acomoda ao que é, mas se compromete com o que pode vir a ser.
A força pedida não é muscular, mas moral, emocional, espiritual. É a força do resiliente, do justo, do que se refaz sem cinismo. É a força que sustenta o orante quando tudo em volta parece puxá-lo para baixo. É o que os estoicos chamariam de fortitudo, e os mestres do Oriente de disciplina interna — o centro que não se quebra mesmo no meio da tormenta.
Pedir força para subir é reconhecer que a subida é real, difícil e necessária. Mas também é declarar que, mesmo sem garantias, o esforço vale por si, pois é nele que o humano se diviniza. Subir até Deus, aqui, não é fuga do mundo — é reconciliação com a parte mais alta de si mesmo.
“Dai-nos a caridade pura e a humildade; dai-nos a fé e a razão.”
Aqui, a oração atinge uma síntese preciosa — quatro virtudes que, juntas, formam o alicerce de uma alma desperta e bem orientada: a caridade como ação, a humildade como base, a fé como impulso e a razão como direção.
* A caridade pura é o gesto mais alto do amor, despido de interesse, vaidade ou necessidade de reconhecimento. É o que Paulo chama de “amor que tudo crê, tudo espera, tudo suporta”. Mas é “pura” — isto é, sem cálculo, sem contaminação pelo ego. Como ensina Maimônides, a caridade perfeita é aquela que se faz no oculto, como oferenda silenciosa à dignidade do outro.
* A humildade é a raiz de toda elevação. É o solo fértil onde o sagrado pode habitar. Em Agostinho, ela é a primeira, a segunda e a terceira das virtudes cristãs. Para os mestres cabalistas, ela é a abertura do vaso — porque Deus só pode entrar onde o ego se retira. Humildade não é negação de valor, é reconhecimento da verdade: de que tudo que temos é dom, e que somos instrumentos, não protagonistas da luz que nos atravessa.
* A fé é o salto, a confiança que sustenta mesmo quando tudo ao redor vacila. Em Kierkegaard, ela é ato de liberdade diante do paradoxo. Em Gabriel Marcel, é fidelidade ao invisível. É entrega lúcida ao mistério que não se reduz aos nossos esquemas, mas que dá sentido à travessia.
* A razão, por fim, não é a adversária da fé — é sua companheira lúcida. É o logos que ilumina o caminho, que julga com retidão, que refina a fé e protege a caridade da ingenuidade. Em Tomás de Aquino, fé e razão são como duas asas com que a alma humana se eleva à contemplação da verdade.
Essa súplica, ao reunir essas quatro virtudes, forma um quadrado simbólico, uma base sólida onde agir, sentir, crer e pensar se integram em harmonia. É a arquitetura da alma que deseja não apenas tocar o divino, mas refletir, com coerência, a sua imagem.
“Dai-nos a simplicidade, ó Pai, que fará de nossas almas o espelho onde há de se refletir a Vossa Divina Imagem!”
Este é o clímax silencioso da prece. Depois de suplicar por força, luz, virtudes e misericórdia, o orante pede aquilo que pode parecer pequeno — mas é tudo: simplicidade. E não uma simplicidade tola, superficial, mas a simplicidade essencial, aquela que os antigos chamavam de pureza de coração, e os sábios orientais chamavam de retorno à origem.
Na tradição cristã, Jesus afirma: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus.” Na Cabala, o recipiente só pode receber a luz do Ein Sof se estiver vazio, limpo, equilibrado. E nos Evangelhos, a criança é o modelo de grandeza, não por ingenuidade, mas por transparência espiritual. Ser simples é estar desarmado. É remover as camadas do ego até que a alma se torne espelho.
A imagem do espelho é uma das mais belas de toda a mística filosófica: não se cria a luz — reflete-se o que já é luz. A alma que se purifica pela simplicidade se torna translúcida. Já não distorce, já não impõe, já não obscurece. Apenas reflete. Como ensinava Plotino, a alma elevada é aquela que se esvazia de tudo o que é estranho à sua origem, até que se torne capaz de contemplar o Uno. Como dizia Buber, é no espaço limpo entre o Eu e o Tu que Deus habita.
Essa simplicidade, porém, não é inata — é conquista. Requer desapego, discernimento, coragem e fé. E quando ela floresce, a alma já não busca brilhar por si mesma — ela se oferece como superfície silenciosa onde o divino possa aparecer.
É por isso que a prece termina aqui. Porque tudo já foi dito. Porque quando se pede simplicidade, já se pede tudo — e já se renuncia a tudo o que impede a luz de passar.
Que assim seja.
Não como fórmula de encerramento, mas como assinatura espiritual de quem entrega, aceita, confia. Um selo de humildade diante do mistério. Um sussurro que encerra a palavra — e abre o silêncio onde Deus pode finalmente agir.
Conclusão: Quando Filosofia e Prece se Encontram e nos Passam a Limpo
A Prece de Cáritas não é apenas uma súplica: é um itinerário da alma, uma filosofia encarnada que parte da dor e culmina na contemplação. Ela não impõe dogmas, mas oferece degraus. Não exige certezas, mas invoca virtudes. É teologia em forma de poesia, e filosofia em forma de súplica.
Como nos ensinaram Kierkegaard e o Dalai-Lama, a oração não muda Deus — ela nos transforma. E se soubermos rezá-la com consciência desperta, com humildade verdadeira e com simplicidade de alma, ela nos devolverá melhores do que éramos: mais lúcidos, mais compassivos, mais próximos da nossa essência mais alta.
Em tempos de barulho e fragmentação, a Prece de Cáritas nos convida ao recolhimento. Em tempos de rigidez ideológica, ela nos lembra da grandeza da compaixão. Em tempos de dor, ela não nos promete imunidade, mas nos oferece algo maior: presença, silêncio, luz e sentido.
Ela nos conduz da petição à comunhão, da carência à gratidão, do ruído à escuta. Da dispersão à unidade. E talvez seja exatamente por isso que ela permaneça viva, rezada, partilhada — como aconteceu comigo, com Ana Favero, com o Dr. José Alves Pacífico, e com tantos outros.
Porque há orações que não passam.
Há orações que nos passam a limpo.
(*) O autor é advogado, Procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.