A Pirâmide invertida de interesses: reflexões sobre Poder, Governança e o Desejo Humano

A máxima política de que “não existe vácuo de poder” sempre me pareceu verdadeira

Aprendi com um querido mestre que um homem se corrompe por pelo menos uma dessas três coisas: dinheiro, poder e sexo. Seu nome era Elson Rodrigues de Andrade, que hoje não está mais entre nós fisicamente, mas vive nas nossas melhores lembranças. Brilhante Professor de Direito Administrativo, a quem dedico este artigo, Elson era conhecido entre os amigos como Platão, por adorar filosofia.

Durante a faculdade, tive a honra de ser seu aluno pela parte da tarde e, à noite, ensinava francês para ele e para sua filha Sandreia na Aliança Francesa de Manaus. Criamos uma sintonia instantânea ao nos conhecermos. Depois, segui seus passos na vida pública, ingressando na carreira de Procurador do Estado do Amazonas, assim como ele.

Ao meu mestre, todo carinho e gratidão.

Agora, vamos ao tema.

O Poder e Seus Riscos: O Que Faz um Governo Funcionar?

Ao longo dos 33 anos em que servi ao Estado do Amazonas como Procurador do Estado de carreira, intercalados por quatro passagens como Procurador-Geral do Estado em governos distintos e uma experiência como Subchefe da Casa Civil, testemunhei de perto a complexidade da administração pública. Governar é uma tarefa monumental, onde se entrelaçam desafios estruturais, políticos e, sobretudo, humanos.

A máxima política de que “não existe vácuo de poder” sempre me pareceu verdadeira. Alguém sempre irá ocupá-lo, e a questão fundamental é: em benefício de quem esse poder será exercido? Será para o bem da coletividade ou para a satisfação de interesses privados e imediatistas?

Ao longo dessa jornada, desenvolvi uma reflexão baseada em um princípio que aprendi na Cabala Judaica, que me ajudou a entender melhor as engrenagens do poder e suas armadilhas: o desejo de receber somente para si mesmo. Esse conceito explica muito do que há de disfuncional na política e nas relações humanas.

Os cabalistas ensinam que somos essencialmente desejos – fomos criados a partir do desejo do Criador, mas nossa essência foi marcada por um impulso egoísta que nos leva a querer sempre mais para nós mesmos, sem considerar o coletivo.

Esse desejo descontrolado dá origem à inveja, ao egoísmo e a todo o espectro dos males sociais. E o mais curioso – e perigoso – é que, assim como alguém que não percebe seu próprio mau hálito, dificilmente enxergamos esses defeitos em nós mesmos. Só os percebemos nos outros. Pior ainda: quando encontramos alguém que reflete nossos piores traços, tendemos a odiá-lo, como se víssemos um espelho do que não queremos admitir em nós.

Além disso, infelizmente, essa armadilha psicológica permeia toda a esfera do poder e explica o porquê dos sistemas políticos, por melhores que sejam em teoria, frequentemente falharem na prática.

A Pirâmide Invertida de Interesses: Um Modelo de Governança

Diante desse cenário, e inspirado pelos desafios concretos que enfrentei no serviço público, desenvolvi um modelo que chamei de Pirâmide Invertida de Interesses, um conceito que busca organizar os interesses na administração pública de forma racional e hierárquica, de modo a evitar que os desejos individuais corrompam a gestão.

Concordo com o aforisma de que uma imagem, às vezes, vale mais do que mil palavras:

Na pirâmide correta, a base mais ampla, que está no topo por estar invertida, representa o interesse público ou coletivo – a razão de ser de qualquer governo.

Abaixo, vêm os interesses institucionais do Governo, que devem ser um meio para garantir a execução de políticas públicas defendidas junto à população e que foram confirmadas pelo processo eleitoral. Jamais um fim em si mesmo.

Logo a seguir, temos os interesses dos parceiros do setor privado, que colaboram na execução de políticas públicas, devidamente selecionados por critérios previstos em lei, supervisionados e fiscalizados pelos órgãos competentes.

Finalmente, na base mais estreita, no ponto inferior da pirâmide, estão os interesses individuais, como salários e benefícios pessoais dos agentes políticos.

Quando essa pirâmide é seguida corretamente, todos podem se beneficiar, pois um sistema bem estruturado pode permitir que governantes e cidadãos prosperem juntos, sem sacrifícios desnecessários, de parte a parte.

Todavia, quando essa pirâmide se inverte, de forma que os interesses individuais passam a ser a prioridade máxima, abre-se um caminho perigoso que pode levar a prejuízos graves para a coletividade em seus mais variados segmentos. A administração pública pode vir a deixar de servir à sociedade e passar a ser apenas um mecanismo de enriquecimento privado e perpetuação no poder.

A Lógica da Pirâmide na Gestão Corporativa

Paralelamente, sabe-se que no mundo corporativo bem-sucedido segue-se uma lógica semelhante, especialmente nas empresas de capital aberto na bolsa:

  1. Os clientes e consumidores vêm primeiro, pois sem oferecer valor real ao público, a empresa não sobrevive.
  2. Depois, vêm os acionistas, que buscam dividendos e valorização de suas ações.
  3. Em seguida, os interesses corporativos da própria empresa, que garantem sua longevidade e inovação.
  4. Por último, estão os interesses individuais dos dirigentes e empregados, que são beneficiados quando a empresa prospera.

Por outro lado, quando essa lógica empresarial é quebrada, e os interesses individuais de dirigentes (bônus excessivos, fraudes, gestão irresponsável) ou de grupos internos sobrepõem-se aos interesses dos clientes e acionistas, as empresas entram em colapso. Casos como o da Enron, da Lehman Brothers e escândalos de corrupção corporativa são bons exemplos disso.

Verifica-se, em qualquer cenário, que os interesses individuais devem ser atendidos por último e isso tem um profundo significado filosófico contido na máxima de São Francisco: É dando que se recebe. Muito embora tenha sido banalizado no meio político, como uma máxima que atende aos interesses da corrupção. Seu sentido correto é o de que devemos dar de nós mesmos para depois podermos receber. Paradoxal mas não estranhamente, mesmo na corrupção funciona porque se trata de uma verdade superior.

O Dilema dos Guardiões: Como Evitar o “Rouba, Mas Faz”?

Se todos os seres humanos possuem o desejo de receber para si mesmos, nos mais variados níveis, como podemos garantir que os guardiões do Estado ajam de forma ética e eficaz em todas as situações? Mesmo que existam raros exemplos, é preciso indagar a que custo familiar e pessoal dessas pessoas?

A solução, ao meu ver e salvo melhor juízo, passa por um equilíbrio: os governantes devem receber sua contrapartida proporcional de maneira justa e transparente, evitando tanto a hipocrisia quanto os abusos.

Na condição de Procurador do Estado, sempre defendi por exemplo que os servidores que trabalham com a arrecadação de tributos do Estado deveriam ser melhor remunerados e tanto quanto possível recebessem uma participação sobre essa arrecadação pelo simples argumento de que: embora uma excelente remuneração não seja garantia de que o servidor não será corrompido, seja muito provável que quanto pior for sua remuneração mais aberta estará a porta para a corrupção. Muito o servidor terá que ganhar com a corrupção e pouco a perder. Na via contrária, se conferirmos melhor remuneração, no mínimo, vamos conferir ao servidor a possibilidade e condições materiais de não precisar se corromper.

Dessa forma, entendo que se os guardiões forem remunerados de forma justa, vinculada ao desempenho e com total transparência, isso reduz o incentivo à corrupção e ao patrimonialismo.

Se, por outro lado, forem impedidos de receber benefícios justos, muitos buscarão meios ilegítimos para compensar seu esforço, perpetuando o ciclo da corrupção.

Portanto, a questão não é se os governantes podem ou não se beneficiar, mas como garantir que esse benefício seja proporcional, legítimo e vinculado ao interesse público.

Mecanismos para Manter a Pirâmide Invertida dos Interesses na Posição Correta

* Remuneração Baseada em Desempenho

* Salários e bônus proporcionais ao impacto real das políticas públicas.

* Governantes serem recompensados apenas quando melhoram a vida da população.

* Fundo de Incentivo Transparente

* Criar um mecanismo legal e auditável para recompensar gestores públicos com base em metas alcançadas.

* Evitar fundos políticos informais e caixas-pretas que favorecem a corrupção.

* Freios e Contrapesos

* Tribunais de contas e órgãos de controle autônomos e com poder real de fiscalização.

* Regulação do Lobby

* O lobby é inevitável, mas precisa ser regulado para que não se torne um mecanismo de captura do Estado.

* Educação para a Consciência Cívica

* Cidadãos precisam entender como o governo funciona para não serem manipulados por discursos populistas.

Conclusão: O Fim da Hipocrisia e o Caminho para uma Governança Justa

A Pirâmide Invertida de Interesses nos ensina que governar não significa eliminar os desejos individuais, mas organizá-los de maneira ética e funcional.

Se os governantes forem remunerados de maneira justa, vinculada ao interesse público e auditável pela sociedade, podemos substituir a cultura do “rouba, mas faz” pela “faz bem e recebe de forma justa”.

Se conseguirmos estruturar um modelo onde quem governa bem tem benefícios legítimos e proporcionais, criaremos um incentivo para que a administração pública atraia os melhores líderes, e não oportunistas.

O desafio está lançado. Como podemos, na prática, criar um sistema onde a ética e a eficiência caminhem juntas?

A resposta não está em negar os desejos humanos, mas em organizá-los para que beneficiem a sociedade como um todo.

 

(*) O autor é advogado, Procurador do Estado aposentado e ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas.