1. Preâmbulo: Quando o Nada se Torna Fundamento
Este texto nasceu da confluência de dois gestos simples, mas cheios de significado: duas pessoas, em mensagens distintas, me enviaram a mesma passagem do Evangelho sobre a casa edificada sobre a rocha.
O acaso, diria Jung, é muitas vezes o nome que damos à sincronicidade quando ainda não aprendemos a escutá-la.
A primeira mensagem trazia apenas o texto literal de Mateus 7,21-29 — denso, direto, inegociável.
A segunda vinha acompanhada de uma reflexão firmada na tradição católica, escrita pelo sábio Apolonio Carvalho, que falava da construção espiritual como um processo que exige cálculos internos, esforço cotidiano e escuta da voz interior — aquilo que os estóicos chamariam de hegemonikon, o núcleo racional da alma.
Apolonio evocava o valor da fidelidade, do esforço persistente, e da coragem silenciosa que resiste à força dispersiva do mundo. Sua leitura é herdeira do pensamento agostiniano: a verdade está no interior do homem, e só ali pode ser encontrada — Noli foras ire, in te ipsum redi.
Ao receber esses dois chamados — um textual, outro meditativo — compreendi que não se tratava de mera coincidência.
Como ensinava Confúcio, “aquele que compreende o tempo certo para agir é um sábio; aquele que o ignora, perde a ocasião de florescer”. Era tempo de parar e ouvir.
Tenho comigo que nada acontece por acaso.
E como vivo em estado de vigília filosófica, sempre disposto a meditar sobre o que me atravessa, acolhi essas mensagens não como distrações, mas como sementes. Não para que eu repetisse algo, mas para que me colocasse em escuta.
Não apenas para ler — mas para ruminar. Não apenas para concordar — mas para investigar.
Pois o verdadeiro pensamento nasce da fricção entre o mundo e a alma, entre o acontecimento e o sentido.
Escrevo, portanto, não a partir de certezas, mas do nada que sei — como bem dizia Sócrates, “só sei que nada sei”, mas esse nada, quando assumido com retidão, torna-se fértil.
Lao-Tsé nos ensina que “o vazio é o que torna útil o vaso” — e talvez seja assim também com o pensamento.
É do vazio que escuta, e não da mente cheia que se impõe, que brota a verdade. Escrevo, então, como quem molda o silêncio. Como quem semeia perguntas. Como quem acolhe a dúvida como um altar.
É sobre esse nada fecundo — humilde, inquieto e amoroso — que lanço a semente deste texto.
Não para impor visões, mas para oferecer minha leitura: sobre a consciência, a prática, e o elo invisível entre o Evangelho, a filosofia e a vida.
Pois como disse Viktor Frankl, “o sentido não se inventa, se descobre”. E às vezes, ele nos chega assim: na forma de uma passagem bíblica enviada duas vezes, por duas mãos distintas, no mesmo tempo interior.
2. A Palavra que Edifica: Entre a Voz e a Ação
“Nem todo aquele que diz: Senhor, Senhor, entrará no Reino dos Céus, mas aquele que faz a vontade do Pai.”
Essa advertência de Jesus, no final do Sermão da Montanha, não é um apelo moral superficial.
É uma convocação radical à coerência ontológica — à fidelidade entre o ser e o agir.
O ensinamento de Cristo aqui não mira a transgressão grosseira, mas o descompasso sutil entre discurso e essência.
Não é a infração visível que condena, mas a dissociação entre a palavra proclamada e o coração ausente.
A fé, se não se torna prática, torna-se simulação — ou pior: autoengano piedoso.
A distinção feita por Jesus entre aparência religiosa e realidade espiritual ecoa, com espantosa sintonia, o âmago da filosofia estoica.
Sêneca advertia que “a filosofia não é oratória, mas medicina para a alma”.
Não se trata de convencer os outros — mas de curar-se por dentro.
Epicteto, por sua vez, era ainda mais incisivo:
“Não me digas que estudaste filosofia; mostra-me que a encarnas.”
Para ele, o verdadeiro filósofo não era aquele que falava sobre virtude — mas aquele cuja vida a tornava visível, mesmo em silêncio.
Esse mesmo espírito está presente nas palavras de Jesus. Ele não rejeita os atos externos — profetizar, expulsar demônios, operar milagres — mas denuncia a dissociação entre o Nome que se invoca e o ser que se vive.
Na linguagem da Cabala, isso equivaleria ao uso profano do Nome sagrado — à Klipá, a casca vazia que recobre a luz.
A casa edificada sobre a areia não é a do pecador declarado, mas a do incoerente refinado.
É o templo interno construído sobre vaidade, vaia ou vanglória. É o que diz, mas não faz. É o que prega, mas não se converte.
A casa sobre a rocha, ao contrário, é a do homem que compreende que verdade não é o que se diz — é o que se encarna.
Como dizia Confúcio: “O homem superior é modesto em suas palavras, mas excede em suas ações.”
No Oriente, essa mesma sabedoria encontra eco no Bhagavad Gita, quando Krishna declara que “melhor é fazer o próprio dever imperfeitamente do que cumprir com perfeição o dever do outro.”
Pois viver a verdade interior — ainda que tremendo — é sempre superior a repetir o que não se vive.
Jesus não exige perfeição. Exige sinceridade.
A fidelidade à vontade do Pai é o nome que Ele dá à integração entre o Logos e o Ethos — entre o verbo e o gesto, entre o pensamento e o ato.
O Reino dos Céus não se acessa com palavras justas, mas com vida justa. Pois, como diria Marco Aurélio, “o que não é útil à colmeia, também não é útil à abelha.”
E uma vida desconectada da verdade interior é, cedo ou tarde, ruína anunciada.
3. O Pardes: Quatro Níveis, Um Chamado
Para compreender a profundidade simbólica das palavras de Jesus, podemos recorrer a uma chave interpretativa milenar da tradição judaica: o Pardes.
A palavra Pardes é um acrônimo formado pelas iniciais de quatro níveis de interpretação das Escrituras:
Pshat – sentido literal: o que está diretamente dito no texto.
Remez – sentido alegórico: imagens e metáforas que apontam para algo além.
Drash – sentido exegético: o questionamento mais profundo, que busca coerência com o todo das Escrituras e da ética.
Sod – sentido místico: o segredo oculto por trás da forma, onde a Palavra toca o mistério do ser.
Essa estrutura revela que cada texto sagrado contém camadas — e cada uma exige de nós um tipo de escuta diferente: da razão, da imaginação, da consciência e da alma.
No trecho de Mateus 7,21-29, essas quatro camadas estão todas presentes, ainda que nem todos as percebam à primeira leitura:
Pshat (literal): A vontade do Pai é critério de entrada no Reino
“Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reino dos Céus, mas o que põe em prática a vontade de meu Pai que está nos céus.” (v. 21)
Aqui está o ensinamento direto e claro: não basta falar ou invocar o Nome de Deus — é preciso viver conforme a vontade divina.
Trata-se de uma regra simples e universal, que qualquer ouvinte pode compreender sem esforço interpretativo.
Remez (alegórico): Rocha e areia como figuras da alma humana
“Quem ouve estas minhas palavras e as põe em prática é como um homem prudente, que construiu sua casa sobre a rocha… quem não as põe em prática é como um homem sem juízo, que construiu sobre a areia.” (vv. 24-26)
Aqui Jesus não está falando de arquitetura.
Ele usa imagens simbólicas: a rocha como figura da consciência firme, do espírito enraizado no Logos; a areia, como figura da vaidade, da instabilidade emocional, da fé sem prática.
É uma metáfora ética e espiritual.
Drash (exegético): A denúncia da incoerência religiosa
“Naquele dia, muitos vão me dizer: ‘Senhor, Senhor, não foi em teu nome que profetizamos? […] E eu lhes direi: jamais vos conheci. Afastai-vos de mim, vós que praticais o mal.” (vv. 22-23)
Jesus aqui não critica a fé em si, mas a dissonância entre o uso do Nome e a prática do mal.
O problema não é profetizar ou fazer milagres — é fazer isso sem conversão interior.
É a mesma crítica que Jesus fará em outros momentos aos fariseus: aparência sem essência.
Esse nível exegético exige comparação com outras passagens e análise ética: o que Jesus rejeita é a incoerência. O discurso sem transformação. A religião sem justiça.
Sod (místico): A rocha como fundamento invisível do ser
“…a casa não caiu, porque estava construída sobre a rocha.” (v. 25)
No nível mais profundo, a rocha simboliza o próprio fundamento oculto da realidade — o Nome divino como Presença, o Logos vivo como sustentação do mundo interior.
Construir sobre a rocha é edificar a alma sobre a Verdade que não muda — o Ser que está além da forma.
Na tradição cabalística, invocar o Nome de Deus sem comunhão é recobri-lo de Klipot — cascas que ocultam a luz.
A casa que cai não é apenas uma metáfora moral: é a alma que não suportou o próprio peso quando os ventos da realidade sopraram.
Ao usarmos o Pardes, não buscamos multiplicar interpretações arbitrárias, mas aprofundar nossa escuta.
Pois toda palavra verdadeira tem camadas. E a sabedoria não está apenas no que se diz, mas no que se descobre ao meditar.
Assim, Jesus não apenas fala: Ele revela. E quem tem olhos para ver, ouvidos para ouvir e coragem para praticar, desce da letra à vida — e edifica sua casa sobre a rocha do Ser.
Essa estrutura quádrupla mostra que o ensino de Jesus é ao mesmo tempo pedagógico, profético, filosófico e místico. É uma forma de sabedoria que não se contenta com a compreensão racional, mas exige transformação do ser.
4. A Consciência como Rocha: Entre Epicteto e o Sermão do Monte
Quando Jesus afirma que “somente aquele que faz a vontade do Pai entrará no Reino”, Ele não está exigindo submissão cega, mas apontando para uma escuta viva da consciência.
A obediência aqui não é servil — é existencial.
É a fidelidade do ser a si mesmo, diante de Deus.
Essa consciência desperta, tão cara ao ensinamento evangélico, era também o eixo da filosofia estoica.
Para Epicteto, a liberdade não consiste em fazer o que se quer, mas em querer o que é justo.
A liberdade se revela quando o homem se curva ao Logos e age em conformidade com ele.
Esse Logos — razão divina que estrutura o universo — é para os estóicos o que a vontade do Pai representa para Jesus:
a Lei não escrita que habita cada um de nós, e que se revela quando silenciamos o ruído das conveniências.
Marco Aurélio, imperador e filósofo, dizia que “o homem virtuoso é aquele que vive segundo sua natureza racional”.
Jesus parece ir além: viver segundo a vontade do Pai é deixar-se guiar por uma consciência amável, justa e fiel — mesmo que isso custe o mundo.
No Tao Te Ching, Lao-Tsé ensina que “aquele que conhece os outros é sábio; aquele que conhece a si mesmo é iluminado”.
Jesus convida a uma iluminação ainda mais alta: conhecer-se à luz do Pai e agir conforme essa luz, mesmo nas trevas.
A rocha sobre a qual a casa se sustenta é, portanto, essa consciência firme, alicerçada na escuta da verdade interior.
Não a verdade do interesse, mas a do dever — não a verdade do momento, mas a do sentido.
O homem que constrói sobre essa rocha é o que pensa com clareza, sente com pureza e age com integridade.
É aquele que une a lucidez socrática com a compaixão cristã — e que transforma sua alma em templo.
Já o que edifica sobre a areia, vive à mercê da opinião alheia, da aparência, da vaidade.
Sua consciência é volúvel, moldada pelo vento do aplauso ou pelo medo da crítica.
Jesus, como Buda e como Sócrates, fala ao íntimo do ser humano. Não ao cargo que ocupa, nem ao templo que frequenta — mas àquilo que ele faz quando ninguém está olhando.
Essa é a rocha.
É essa consciência que sustenta o justo em meio à tempestade. Pois a casa construída sobre ela pode até tremer — mas não cai. E não cai porque está fundada no que não muda.
5. Conclusão – Quando a Pedra é Palavra e a Palavra se Faz Casa
Ao final de sua fala, Jesus não entrega um dogma, mas uma distinção.
Não entre religiosos e ateus, nem entre santos e pecadores — mas entre os que vivem a verdade e os que apenas a proclamam.
A rocha não é a certeza. É a coerência. É a fidelidade silenciosa entre o que se crê, o que se pensa e o que se pratica.
Não há espiritualidade sólida sem consciência desperta. E não há consciência desperta sem prática cotidiana.
Filosofia, fé e ética se unem quando o ser humano escolhe, mesmo na dúvida, agir como se a verdade existisse — e como se estivesse dentro dele.
Jesus, Epicteto, Lao-Tsé, Sócrates e Buda — cada qual a seu modo — ensinaram que o essencial não se prova com palavras, mas se revela no modo de viver.
E que a sabedoria não se mede por quanto se fala, mas por quanto se sustenta em silêncio.
Construir sobre a rocha é, portanto, escolher, dia após dia, fundar a vida naquilo que permanece, mesmo quando tudo passa. É agir com firmeza sem arrogância. É amar com coragem sem precisar de plateia.
Como diz o Bhagavad Gita: “Aquele que venceu a si mesmo, esse é o verdadeiro conquistador.”
Pois a verdadeira casa é aquela onde a alma repousa em paz — e onde a tempestade não afoga, mas revela.
6. Epílogo – Quando o Estudo Desce ao Chão e o Amor Permanece
Em dois momentos marcantes da minha jornada, compreendi com mais nitidez o que significa construir sobre a rocha.
O primeiro foi ao conhecer o Movimento dos Focolares, cuja proposta essencial é encarnar o Evangelho no ordinário da vida.
Ali, aprendi que o Verbo se faz carne não em discursos, mas em gestos de comunhão.
A unidade não é uma ideia: é uma prática que exige renúncia de si, fidelidade ao outro e acolhimento do divino no cotidiano.
Com os Focolares, experimentei que a Palavra só ganha força quando se torna vínculo.
E que a rocha não é apenas firmeza — é reciprocidade, presença e permanência silenciosa.
O Amor, ali, não é um ideal, mas uma arquitetura viva entre almas que se oferecem.
O segundo marco foi minha passagem pela Nova Acrópole, onde se ensina filosofia à maneira clássica: como caminho de transformação interior.
A grandeza ali não está em acumular saber, mas em aplicar com honestidade aquilo que se compreende.
Aprende-se a viver como se o universo estivesse ordenado — e como se a ordem começasse em nós.
Na Nova Acrópole, a filosofia reencontra sua vocação sapiencial: formar seres humanos integrais, coerentes, éticos e conscientes de seu papel na História. Nela, o Logos desce à terra e volta a ser semente.
Também lá, entendi que saber sem ação é areia — e que prática sem sentido é ruína.
Essas duas experiências me revelaram, por caminhos distintos, uma mesma verdade:
nada é mais alto do que viver com profundidade aquilo que se compreendeu com clareza.
E que a casa do espírito não se constrói com tijolos de eloquência, mas com a argamassa da fidelidade.
E talvez o aprendizado mais profundo que emerge dessas vivências — à luz do Evangelho e da filosofia vivida — seja este:
nada se compara à sensação íntima e consciente de que a verdadeira paz não depende do que acontece ao meu redor, mas de como estou diante do que acontece.
Quando se percebe que há um Amor maior que tudo sustenta, que tudo acolhe e que agradece por tudo o que acontece, então não se reage mais por medo, mas se vive por gratidão.
Não se resiste por orgulho, mas se permanece por humildade.
No fim, tudo passa: as tempestades vêm, os ventos mudam, as palavras se dispersam.
Mas há algo que não passa — e que, por isso mesmo, sustenta todas as coisas.
Como escreveu São Paulo aos Coríntios:
“Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor — estas três. Mas o maior deles é o amor.”
(1 Coríntios 13,13)
E é sobre o Amor, sobre essa rocha invisível e eterna, que desejo continuar edificando — com firmeza, humildade e gratidão.
(*) O autor é advogado, Procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.