Sempre me impressionou a forma como o povo judeu responde à tragédia.
Não com desespero, mas com construção.
Não com vingança, mas com resiliência.
Viktor Frankl, psiquiatra vienense e sobrevivente de Auschwitz, ensinava que a última liberdade humana é a de escolher como responder às circunstâncias. Ele perdeu pais, esposa e irmãos nos campos de extermínio. Ainda assim, ao sair de lá, escreveu:
“A vida nunca deixa de ter sentido, mesmo diante do sofrimento, desde que este seja enfrentado com dignidade.”
Essa convicção, para o povo judeu, não é apenas pessoal. É civilizacional. Está presente em cada geração que se recusou a desaparecer — mesmo quando o mundo parecia desejar sua extinção.
2. Trauma, Cultura e Tikun Olam
Do Holocausto emergiu não apenas um povo sobrevivente, mas uma civilização resiliente.
Contra todas as probabilidades, o povo judeu se reergueu para se tornar, proporcionalmente, o que mais contribuiu para o avanço do conhecimento humano — com prêmios Nobel em física, medicina, economia, literatura, química e paz. Não por milagre. Por escolha.
Uma escolha que se fundamenta em um princípio ético e espiritual milenar: Tikun Olam, a reparação do mundo.
A expressão “Tikun Olam” aparece pela primeira vez na literatura rabínica no Aleinu, uma antiga oração do século III, e também no Talmude, em contextos jurídicos e sociais. Mas é na Cabala Luriânica, desenvolvida no século XVI por Rabi Isaac Luria (o Ari), em Safed, que o termo ganha sua densidade metafísica e cósmica.
Segundo essa tradição mística, no início da criação Deus contraiu a si mesmo — um ato chamado Tzimtzum — para que houvesse espaço para o mundo. Em seguida, Deus emanou Sua luz para dentro de recipientes espirituais (kelim), mas a intensidade da luz era tão grande que os recipientes não puderam contê-la. Eles se romperam — é o episódio conhecido como Shevirat haKelim, a quebra dos vasos.
Com a quebra, fragmentos da luz divina se dispersaram por toda a criação, aprisionados em formas materiais e na imperfeição do mundo.
É aqui que entra o ser humano.
Segundo a Cabala, a missão da alma humana é reunir esses fragmentos, libertar a luz aprisionada e restaurar, pouco a pouco, a harmonia cósmica. A isso se chama Tikun — reparação. Quando essa reparação atinge não apenas o indivíduo, mas o coletivo e a Criação como um todo, chamamos de Tikun Olam — a reparação do mundo.
Essa não é uma metáfora poética. É uma ontologia do sofrimento redimido pela ação consciente.
Cada gesto de justiça, compaixão ou aprendizado é um ato de reparação. Cada resposta ética ao trauma é um passo rumo à reconstituição da unidade perdida.
O Tikun Olam é, portanto, mais do que um princípio espiritual: é a ética da reconstrução aplicada ao real. Uma forma de existência que se recusa a responder à violência com destruição, ao caos com niilismo, à dor com desespero.
E aqui compartilho minha visão pessoal, nascida do entrelaçamento entre o estudo e a vivência:
A quebra dos vasos, para mim, representa a dor, a doença, o sofrimento e até mesmo a morte — experiências que, quando revisitadas por quem conseguiu realmente controlar suas emoções e iluminar-se espiritualmente, permitem a construção de um novo recipiente: maior, mais resistente, mais consciente.
Esse novo vaso, fruto do sofrimento redimido, está mais apto a conter a luz. Mas o ponto culminante não é a sua ampliação — é a sua abertura.
Quando o vaso se abre, voluntariamente, para dar — quando ele se torna canal e não apenas contenção — aí ocorre o verdadeiro milagre espiritual: a luz já não precisa mais romper o recipiente, porque ela flui.
Ela passa por ele. Ela transborda.
Essa é a essência da Tsedaká (justiça generosa), que não é apenas uma caridade pontual, mas um modo de existir em que o ser humano deixa de viver para si e passa a ser conduto da luz divina no mundo.
Nesse momento, não há mais quebra.
Há fluxo.
E onde há fluxo, há vida — e reparação.
3. A Civilização Que Não Cultua o Ódio
Não obstante os muitos contrastes possíveis entre culturas, há um que se impõe com força trágica e simbólica nos dias de hoje: alguns educam para a vingança, outros para a reconstrução.
A tradição judaica — moldada pelo exílio, pela perseguição e pelo trauma — poderia ter facilmente se transformado em uma cultura do ressentimento. E, no entanto, ela recusou esse caminho.
Ela escolheu não cultivar o ódio como herança, mas a responsabilidade como vocação.
Não idealizou o sofrimento, mas o transfigurou em sabedoria, ciência, justiça e compaixão.
A escolha por não ceder ao ódio não é ingênua.
É uma postura civilizacional, espiritual e ética profundamente fundamentada.
Como ensina o Pirkei Avot (Ética dos Pais), um tratado da Mishná:
“Quem é o forte? Aquele que domina seu instinto.”
Ao contrário do que muitos pensam, a força de um povo não está em sua capacidade de retaliar, mas em sua capacidade de canalizar a dor para um propósito mais alto.
Essa força — que não se confunde com passividade, mas se expressa como autocontrole, consciência e generosidade — é o que sustenta a alma de uma civilização quando tudo ao redor clama por retaliação.
O gesto da família Bibas não é apenas comovente.
É um gesto profundamente judaico no sentido mais elevado da palavra.
Transformar brinquedos de luto em brinquedos de esperança não é apenas uma homenagem. É um ensinamento. Um ato de resistência espiritual.
Na tradição da Cabala, se o sofrimento é a quebra do vaso, o ódio é o seu endurecimento.
É quando o recipiente, rachado pela dor, se fecha em si mesmo e recusa qualquer luz.
Mas quando o vaso se abre — quando ele escolhe doar — ele deixa de ser um fim em si e se torna um canal vivo de transbordamento da luz divina.
É por isso que a civilização judaica sobreviveu a tudo o que visava destruí-la.
Porque ela escolheu educar para a vida, mesmo quando cercada pela morte.
Escolheu lembrar com dignidade, e não com vingança.
Escolheu construir hospitais, universidades, centros de estudos e redes de solidariedade onde outros cultivam mártires, bombas e slogans de ódio.
Essa escolha tem um preço — mas também uma recompensa: a continuidade.
E mais do que isso: a dignidade de manter-se humano, mesmo quando tudo conspira para a desumanização.
3.1 Justiça Não É Vingança: A Força de Gevurá a Serviço da Vida
Diante das críticas recorrentes ao Estado de Israel — muitas vezes lançadas por simpatizantes do Hamas ou por uma visão ideologicamente distorcida dos conflitos — é preciso reafirmar, com clareza filosófica e ética: justiça não é vingança. Mas também não é passividade.
Na tradição da Cabala Judaica, o mundo é sustentado por três forças primordiais:
• Chesed (חֶסֶד): a bondade expansiva, o amor que doa sem limites;
• Gevurá (גְּבוּרָה): a força do rigor, da contenção e da justiça;
• Tiferet (תִּפְאֶרֶת): a beleza que nasce do equilíbrio entre dar e conter — a misericórdia verdadeira.
Quando um povo, um indivíduo ou uma nação se vê diante do mal absoluto, como o terrorismo que assassina crianças e celebra a morte como método, agir com Gevurá — o rigor necessário para preservar a vida — não é oposto à espiritualidade. É expressão dela.
Gevurá não é ódio.
É a disciplina moral que impede o colapso da ordem.
É a resposta que protege os inocentes, não por sede de sangue, mas por fidelidade ao valor da vida.
Na visão cabalística, Chesed sem Gevurá vira fraqueza.
Gevurá sem Chesed vira tirania.
Mas quando ambas se encontram em Tiferet, temos a verdadeira misericórdia: aquela que sabe quando conter, quando proteger, quando punir e quando perdoar.
É exatamente isso que o Estado de Israel procura realizar:
Ao responder com firmeza ao terrorismo, ele não cultua a violência, mas afirma os limites morais que impedem a barbárie de se tornar norma.
Como afirmou Karl Jaspers, após os julgamentos de Nuremberg:
“A justiça dos tribunais internacionais não foi vingança. Foi um limite moral à banalização do mal.”
A justiça verdadeira é aquela que, como Tiferet, sustenta a dignidade sem se render à ira.
E é por isso que, quando Israel age para neutralizar uma ameaça terrorista, ele o faz não apenas para proteger seu povo, mas para defender os próprios pilares da civilização.
Como ensina o Talmude:
“Aquele que se compadece dos cruéis acabará sendo cruel com os inocentes.”
Não se trata de responder com ódio.
Mas de impedir que o mal, se não for contido, destrua também o que há de mais sagrado: a possibilidade da vida florescer com justiça, compaixão e memória.
4. Quando a Luz Transborda: Tsedaká Como Ato Civilizacional
A mística judaica ensina que o ser humano, ao se reconstruir, se torna capaz de conter mais luz.
Mas há um momento ainda mais alto na jornada espiritual: quando o recipiente se abre e passa a deixar a luz fluir — não mais para si, mas para os outros.
Esse é o sentido mais elevado de Tsedaká:
Não apenas dar, mas permitir que a luz que nos atravessa alcance o mundo.
A Cabala nos ensina que esse transbordamento não é perda — é plenitude.
Foi isso que fez a família Bibas ao doar os brinquedos que simbolizavam o luto de milhares.
Foi isso que fez a organização Toys for Hospitalized Children, ao transformar dor em cuidado.
E é isso que fazem, todos os dias, os que decidem agir com amor responsável, mesmo diante do horror.
Mas aqui, mais do que misticismo, entra a realidade histórica:
Quando um povo transforma sua dor em serviço ao próximo, ele deixa de ser apenas sobrevivente — e se torna fundador de civilização.
Esse gesto não reconstrói apenas um recipiente individual.
Ele transforma a própria sociedade em um vaso coletivo capaz de canalizar compaixão, reconstrução e esperança — especialmente para aqueles que ainda podem viver: as crianças.
É como se Ariel e Kfir, que não puderam crescer, agora emprestassem sua memória para que outros possam crescer em paz.
Brincar, sorrir, sobreviver.
Enquanto alguns povos transformam seus filhos em mártires, outros transformam a memória de seus filhos em abrigo para os filhos dos outros.
Essa é a diferença entre o culto à morte e o compromisso com a vida.
Entre o ódio que consome e o amor que sustenta.
Entre a civilização que implode e a que, mesmo ferida, se levanta para sustentar o mundo com mãos abertas.
Tsedaká, neste nível, já não é virtude individual — é fundamento coletivo.
É o que distingue uma cultura que educa para a destruição de uma que educa para a continuidade.
E quando a continuidade é garantida — mesmo sob o peso da perda — o mal não vence.
Porque, ainda que tenha interrompido uma vida, ele não interrompeu o fluxo da luz.
5. Que Eles Vivam: Quando a Luz Não Se Apaga
Tudo na tradição judaica aponta para isso: a vida deve continuar.
Mesmo quando a dor parece insuportável.
Mesmo quando os vasos se quebram.
Mesmo quando o mal toca o que há de mais sagrado.
A força de um povo, de uma fé, de uma civilização, não se mede apenas pela sua capacidade de resistir ao sofrimento — mas pela sua decisão de não perpetuá-lo.
É por isso que o gesto da família Bibas e de todos os que se somam a esse Tikun silencioso não é apenas comovente. É luminoso.
Transformar o luto em brinquedo, o memorial em abrigo, a ausência em esperança — isso é mais do que resiliência: é redenção.
É a luz que não se apaga.
É o fluxo que não se interrompe.
Ariel e Kfir, que não puderam brincar por mais tempo, agora emprestam seus nomes e sua memória para que outras crianças, hospitalizadas, encontrem consolo, alívio e alegria.
Eles não estão mais entre nós — mas há algo de sagrado no fato de que seus brinquedos agora permitem que outras infâncias não sejam roubadas.
Que outras mães ainda possam sorrir.
Que outras vidas não sejam interrompidas.
Esse é o verdadeiro Tikun Olam.
Não aquele que se anuncia com slogans, mas o que se realiza com gestos silenciosos e luminosos.
Não aquele que busca protagonismo, mas o que oferece passagem.
Como ensina o Zôhar, a obra central da Cabala:
“Há luz que ilumina o mundo porque rompe a escuridão.
Mas há luz ainda maior: a que transforma a escuridão em seu próprio brilho.”
Que essa luz permaneça.
Que a memória de Shiri, Ariel e Kfir Bibas seja para bênção.
E que as crianças que brincarem nessas salas — cercadas por flores e borboletas — possam viver não apenas por si, mas também por eles.
Este artigo foi escrito com base em fontes confiáveis que noticiaram a criação da brinquedoteca em memória da família Bibas. As informações foram confirmadas por veículos como The Jerusalem Post e eJewishPhilanthropy.
Mais do que informar, o texto busca refletir sobre a capacidade civilizacional do povo judeu de transformar sofrimento em sentido — algo que nos inspira a todos, judeus ou não, a responder à dor com dignidade, compaixão e reconstrução.