Humildade em Paraty: a sabedoria do caminhar, o sagrado das pedras e a filosofia do olhar

Não foi uma epifania vinda do alto, mas uma lição brotada das pedras irregulares sob nossos pés

Epígrafe:

“Só os que aprendem a olhar para baixo com reverência, podem erguer o olhar com sabedoria.”

Dedicatória:

A minha querida esposa Tricia, com quem cada passo torna-se caminho, e cada silêncio, escuta. Porque amar é também aprender a caminhar juntos, atentos às pedras, ao tempo e ao outro.

Introdução: Quando o Caminho Fala ao Espírito

A ideia deste artigo nasceu de um instante simples, mas profundamente revelador. Eu caminhava pelas ruas de Paraty ao lado de Tricia — minha companheira de tantos silêncios compartilhados e conversas essenciais — quando fui surpreendido por um pensamento que emergiu do chão. Não foi uma epifania vinda do alto, mas uma lição brotada das pedras irregulares sob nossos pés.

Percebi, naquele momento, que caminhar em Paraty exige algo raro nos tempos apressados em que vivemos: exige atenção. Exige, mais ainda, humildade e paciência. Ali, não basta saber para onde se vai — é preciso olhar por onde se pisa. As ruas da cidade, com suas pedras centenárias, não se curvam à pressa nem à distração. Elas impõem o passo lento, o olhar cuidadoso, o respeito pelo caminho. E fazem isso sem palavras, como os mestres que ensinam apenas com a presença.

Foi então que compreendi: há filosofias que nascem dos livros — e há filosofias que nascem do caminhar. E Paraty, com sua história silenciosa, seus becos de pedra e sua beleza intacta, parecia sussurrar uma dessas filosofias antigas, profundas, esquecidas: a filosofia da humildade.

Não a humildade domesticada, que se confunde com submissão, mas aquela que se revela no gesto simples de baixar o olhar para ver melhor. De escutar o que o caminho tem a dizer. De aceitar que, por mais belo que seja o horizonte, é o chão que sustenta a travessia.

Essa introdução é o primeiro passo de uma reflexão que se desdobra como o caminhar pelas ruas da cidade: com cuidado, com encantamento, com reverência. E com o desejo sincero de transformar o tropeço em pensamento.

1. O Chão que Ensina: A Metáfora do Caminhar em Paraty

Foi numa manhã calma, entre o som dos passos e o murmúrio das marés de Paraty, que percebi algo essencial: o chão falava. Não com palavras, mas com pedras. E cada uma delas parecia me lembrar que a beleza da travessia não está apenas no destino, mas na forma como se pisa o caminho.

Andar em Paraty não permite arrogância. O chão da cidade é um mestre severo e silencioso: obriga-nos a reduzir o passo, a descer o olhar, a abandonar a ilusão de que se pode andar por este mundo sem cuidado. Exige uma humildade prática e concreta — aquela que se expressa não em discursos, mas em atenção. Não em submissão, mas em presença.

Essa pedagogia do caminhar lembra o ensinamento dos antigos mestres orientais, como Lao-Tsé, para quem o verdadeiro sábio é aquele que flui com o Tao, aceitando as irregularidades do mundo sem pretender alisá-lo. “Quem sabe caminhar, não deixa pegadas”, dizia o Tao Te Ching — uma forma de dizer que a leveza está em quem caminha com consciência, sem ferir o terreno, sem se julgar maior que ele.

Na Cabala Judaica, o conceito de malchut — a última sefirá da Árvore da Vida — representa exatamente esse chão espiritual: o receptáculo, o mundo material onde se concretizam os altos fluxos da Criação. Não por acaso, malchut está associada à humildade e à presença. É o ponto mais baixo da Árvore, mas também aquele que sustenta todos os outros. Paraty, com suas pedras irregulares, é uma imagem perfeita de malchut: belo, concreto, imperfeito e sagrado.

Baixar os olhos para não tropeçar — eis um gesto que, paradoxalmente, eleva o espírito. É ao reconhecer os limites do caminho que nos tornamos dignos de avançar. Heráclito talvez sorrisse com isso: o chão de Paraty encarna sua máxima de que tudo flui (panta rhei), mas nos lembra que é preciso acompanhar esse fluxo com consciência do instante presente. Cada passo é irrepetível. E cada distração pode ser um tropeço ou uma oportunidade de despertar.

Aristóteles, com sua ênfase na phronesis, a sabedoria prática, diria que caminhar em Paraty é um exercício ético. Exige discernimento, exige a justa medida: nem andar com pressa, nem parar por medo. Exige que nos adaptemos à realidade tal como ela é — e não como desejaríamos que fosse.

E há ainda, nesse solo que fala, uma dimensão mística: as pedras de Paraty parecem guardar segredos. Como os koans do Zen budista, que desafiam o pensamento lógico para despertar a intuição, o chão de Paraty nos convida ao não-saber fértil. A caminhar sem respostas prontas. A escutar sem a ânsia de dominar.

Foi ao lado de Tricia, partilhando o silêncio e o riso da caminhada, que compreendi isso. O amor também se revela no passo conjunto — na delicadeza de avisar ao outro onde há um desnível, no cuidado de ajustar o ritmo para que os passos ressoem em harmonia. Paraty nos ensinava, ali, algo que os grandes mestres sempre souberam: não há sabedoria que não comece pelo chão.

O verdadeiro sábio é aquele que aprendeu com os tropeços, mas que jamais deixou de caminhar. E que, como ensina a Cabala, reconhece na imperfeição da pedra não um erro a corrigir, mas um convite a crescer. Paraty, com seus caminhos de pedra, é um espelho da alma: ali, cada passo revela quem somos quando ninguém está olhando — ou quando olhamos apenas para onde pisamos.

2. A Humildade como Sabedoria Prática: Aristóteles e a Phronesis

“O homem sábio não é aquele que sabe tudo, mas aquele que sabe como pisar.”
(Provérbio atribuído ao deserto egípcio, relembrado nos comentários místicos do Zôhar)

Se o chão de Paraty nos convida à atenção, é porque há algo em sua irregularidade que desautoriza a soberba. A altivez do que caminha sem ver por onde pisa não resiste muito tempo à honestidade das pedras. Não há privilégio, riqueza ou vaidade que nos impeça de tropeçar. Diante da realidade, todos somos nivelados — não por baixo, mas por dentro.

Aqui, Aristóteles nos serve de guia. Em sua Ética a Nicômaco, ele nos ensina que a vida boa não é a do excesso nem a da falta, mas a do meio virtuoso. E o nome que dá à sabedoria que reconhece e pratica esse meio é phronesis — a prudência, a sabedoria do cotidiano, a arte de discernir com sensatez o modo adequado de agir em cada situação concreta. Em outras palavras: a humildade aplicada ao gesto.

O humilde não é aquele que se diminui por insegurança, mas aquele que conhece seus limites com lucidez. Ele não se ajoelha por temor, mas caminha com reverência. Reconhece que o mundo não é um palco a ser dominado, mas um solo sagrado a ser trilhado com respeito.

O orgulho — esse falso mestre — costuma olhar apenas para o destino. A humildade, por sua vez, olha para o caminho. Não porque não tenha ambições, mas porque sabe que a pressa cega é o prelúdio do erro. A humildade não se opõe à grandeza, mas à ilusão de grandeza. É, como dizia Confúcio, a base de toda virtude verdadeira, pois só quem se curva diante da realidade pode aprender com ela.

Na Cabala Judaica, esse equilíbrio entre desejo e contenção se manifesta no conceito de tiferet — a beleza que nasce da harmonia entre amor e rigor, entre expansividade e limite. A tiferet é a virtude do rei justo, do sábio equilibrado, do ser humano que não impõe sua vontade ao mundo, mas age com discernimento e justiça, porque aprendeu a ouvir antes de decidir. O caminhar humilde é, portanto, uma expressão de tiferet: firme, mas sensível; atento, mas não ansioso.

Na tradição do Bhagavad Gita, Krishna ensina a Arjuna que o verdadeiro guerreiro é aquele que age sem apego aos frutos da ação. Essa renúncia ao ego — essa entrega serena ao dever — é também um tipo de humildade: não a do submisso, mas a do senhor de si mesmo. E que maior prova de domínio interior existe do que saber esperar, ajustar o passo, ceder ao terreno com nobreza?

Paraty, então, se converte em metáfora dessa sabedoria prática. Suas pedras são como as circunstâncias da vida: inevitáveis, imprecisas, instáveis. Só quem caminha com phronesis — com humildade e atenção — consegue atravessá-las sem se perder, e sem perder a dignidade do gesto.

A humildade, enfim, é uma inteligência do corpo e da alma. E o que a cidade histórica nos ensina, ao exigir um caminhar vigilante, é que essa inteligência não nasce do estudo apenas, mas da experiência. Quem não sabe se curvar às pedras, talvez também não saiba se curvar à verdade.

3. A Relação Eu-Tu com o Caminho: Buber e o Respeito pelo Outro

“O verdadeiro caminho começa quando deixamos de ver o mundo como cenário e passamos a vê-lo como presença.”
(Martin Buber, em ecos de “Eu e Tu”)

Há algo em Paraty que convida ao silêncio. Mas não é o silêncio do vazio: é o silêncio da escuta. Cada pedra no chão parece conter uma história, uma intenção, uma delicadeza rústica que se impõe sem ruído. E, diante delas, o caminhar não é mais um simples deslocar-se — torna-se um encontro.

Esse encontro é o que Martin Buber chamou de relação Eu-Tu. Ao contrário da relação Eu-Isso — onde o mundo é objeto, recurso ou obstáculo — a relação Eu-Tu é aquela em que o outro se revela como presença. Não se trata de funcionalidade, mas de reverência. Não se trata de usar, mas de estar-com.

Caminhar por Paraty exige esse tipo de relação. As pedras não se deixam dominar. Não são um “isso” que se curva à nossa vontade. São um “Tu” que nos interpela. E ao reconhecermos isso, deixamos de tratá-las como meras irregularidades — e passamos a tratá-las como convite. A cidade, então, deixa de ser cenário e torna-se companheira. Deixa de ser obstáculo e torna-se mestra.

Buber nos ensina que a verdadeira relação Eu-Tu é sempre um vislumbre do eterno. Porque quando algo — ou alguém — se nos apresenta como Tu, algo do sagrado se manifesta. E o sagrado não se impõe, não grita, não exige. Ele se oferece. Está ali, à espera de um olhar capaz de reconhecê-lo.
É nesse ponto que a Cabala Judaica e Buber se tocam. O conceito de Shechiná, a Presença Divina imanente, está profundamente associado ao ato de atenção reverente. Quando se caminha com respeito, quando se olha com humildade, quando se pisa com consciência, a Shechiná se revela. Não nas alturas, mas no chão. Não nos templos, mas nos passos. A Shechiná habita onde há relação verdadeira — mesmo que essa relação seja com uma pedra antiga, marcada pelo tempo e pela história.

Buber, influenciado pela mística judaica, sabia que a espiritualidade não é uma fuga do mundo, mas uma maneira elevada de estar nele. E Paraty, com sua arquitetura simbólica e seu urbanismo quase ritual, parece pedir exatamente isso: que estejamos presentes. Que deixemos de correr. Que passemos a perceber.

Nas tradições orientais, essa mesma percepção aparece de modo paralelo. O Zen fala do satori — o instante de iluminação súbita que pode surgir ao se observar uma folha, ao lavar uma tigela, ao caminhar por um terreno irregular. A realidade comum, quando vista com olhos despertos, revela o extraordinário. E Paraty, silenciosa e firme, é uma mestra zen disfarçada de vila colonial.

Caminhar ali com Tricia, partilhando o tempo e a paisagem, foi um gesto simples, mas essencial. A atenção mútua — com o caminho e entre nós — fez do instante uma espécie de sacramento. E compreendi que não é possível amar alguém de verdade sem estar atento ao terreno por onde se caminha ao lado dela. A relação Eu-Tu, afinal, exige presença dupla: com o outro, e com o chão que sustenta ambos.

A humildade aqui se revela como uma ética do encontro. Caminhar com humildade é reconhecer que o mundo não está à nossa disposição. É perceber que cada pedra, cada pessoa, cada silêncio pode ser um “Tu” que nos pede escuta — e não pressa.

4. Fluidez e Adaptação: Lao-Tsé, o Tao e a Sabedoria do Ceder

“O homem superior é como a água: ela beneficia todas as coisas, sem disputar com nenhuma.”
(Lao-Tsé, Tao Te Ching, cap. 8)

Há algo de paradoxal em caminhar pelas ruas de Paraty: embora elas sejam feitas de pedra, exigem leveza. Os que tentam vencê-las com pressa, rigidez ou arrogância acabam tropeçando. Já os que se entregam ao ritmo natural do percurso — com flexibilidade e atenção — descobrem uma lição silenciosa sobre a arte de ceder.
É nesse ponto que o ensinamento de Lao-Tsé encontra as pedras de Paraty como cenário ideal para manifestar-se. O Tao — o caminho — não é algo que se conquista pela força, mas que se compreende pelo fluir. E fluir não significa ser passivo, mas ser moldável. Saber quando avançar, quando parar, quando se curvar, quando silenciar.

A água, símbolo maior do Tao, vence a pedra não por força, mas por constância e adaptação. A humildade ensinada por Lao-Tsé não é a do fraco que se entrega ao destino, mas a do sábio que compreende o ritmo do universo e age em sintonia com ele. É a sabedoria do ceder para permanecer. Do recuar para avançar com sentido.

Nas ruas de Paraty, o passo deve ser leve e atento, como se dançasse com o chão. Essa dança é espiritual. É a dança do Tao. E como ensina a tradição oriental, quem se torna rígido envelhece, seca, morre por dentro. O espírito vital é o que permanece flexível. E é preciso mais força para ser maleável do que para ser duro.

Essa mesma lição aparece na Cabala Judaica por meio da interação entre as sefirot de Chesed (misericórdia, expansão) e Gevurá (rigor, contenção). A sabedoria está em harmonizá-las, sem permitir que a dureza domine. Paraty, com sua irregularidade imperturbável, nos coloca diante dessa escolha: endurecer diante das dificuldades do trajeto, ou amolecer o passo, ajustar o ritmo, e continuar com humildade e confiança.

Como nos ensina o Bhagavad Gita, o sábio não se identifica com os extremos. Ele permanece no centro. Age com firmeza, mas sem apego. Caminha sem desejar dominar o caminho, mas servindo-se dele como espelho para seu próprio aprimoramento interior. O caminho, assim compreendido, deixa de ser um obstáculo — torna-se um mestre.

Andar com Tricia pelas pedras de Paraty foi também um exercício de sintonia: dois corpos ajustando o ritmo, respeitando o tempo do outro, aprendendo a ceder para seguir juntos. Porque, no fundo, toda relação duradoura é construída sobre esse princípio: não se impõe o passo, harmoniza-se o compasso.

E talvez o mais belo seja isso: que uma simples pedra no chão, quando observada com espírito desperto, contenha toda a sabedoria do Tao. Que o caminhar humilde seja, em si mesmo, um ato espiritual. E que Paraty — sem alarde, sem discurso — nos ensine que a verdadeira força está em quem não precisa provar nada. Apenas segue, flui, aprende. E, assim, permanece.

5. O Tempo e o Tropeço: Heráclito e a Atenção ao Instante

“Nenhum homem entra duas vezes no mesmo rio, pois não é o mesmo rio, nem o mesmo homem.”
(Heráclito de Éfeso)

Em Paraty, o tropeço não é um acidente — é um chamado. Um convite à presença. As pedras não toleram desatenção, e é justamente essa intolerância silenciosa que nos ensina a estar. Cada passo exige um gesto de vigilância, cada movimento uma decisão consciente. E é nesse gesto, tão simples e esquecido, que o tempo se revela não como linha, mas como instante.

Heráclito, o filósofo do devir, compreendia como poucos a natureza do tempo. Para ele, tudo flui (panta rhei), e o erro está em tratar o mundo como se fosse fixo, previsível, contínuo. A pedra que ontem sustentou o passo pode hoje provocar o tropeço. O chão é o mesmo, mas o momento não é. E se não há como fixar o instante, só nos resta uma atitude possível: a atenção.

O tropeço, quando acolhido como lição, revela o que o hábito esconde. Na lógica de Heráclito, a vida não é feita de coisas, mas de eventos. E todo evento é uma interseção entre o ser e o tempo. Paraty nos oferece essa interseção em forma de chão. Caminhar ali não é apenas deslocar-se: é envolver-se com o momento presente como se ele fosse tudo — porque, de fato, é.

Essa atenção radical ao instante é o cerne da prática espiritual em muitas tradições orientais. No Zen Budismo, por exemplo, o tropeço é visto como oportunidade de despertar. Não se trata de evitar o erro a todo custo, mas de usá-lo como ocasião para retornar ao agora. O mestre zen não reprova o discípulo que tropeça — reprova o que tropeça sem aprender.

Na Cabala Judaica, essa mesma ideia se expressa no conceito de Tikun — a reparação. O tropeço, nesse horizonte, não é fracasso, mas parte de um processo sagrado de reconstrução. Mesmo as quedas carregam potencial de elevação, desde que haja consciência. Desde que se caminhe de novo, com mais lucidez. E Paraty, com seu solo exigente e pedagógico, parece ter sido construída como um campo simbólico de tikun: tropeça-se para aprender, pisa-se com mais cuidado, recomeça-se com mais sabedoria.

O instante presente — o agora que nos escapa a cada distração — é o verdadeiro templo do filósofo e do místico. E as pedras de Paraty, imóveis em sua materialidade, tornam-se mestras da impermanência. Porque não mudam, mas exigem de nós que mudemos. Que nos adaptemos, que prestemos atenção, que estejamos ali, sem dispersão.

Caminhar por aquelas ruas ao lado de Tricia foi também um exercício de sintonia com o tempo. Houve momentos em que falávamos, outros em que apenas caminhávamos em silêncio. E nesses silêncios, o tempo parecia dilatar-se. Não como algo abstrato, mas como uma presença viva, densa, palpável — como se o instante tivesse peso, textura e ensinamento.

O tropeço, então, deixou de ser um erro e tornou-se sinal. Sinal de que estamos vivos, atentos, conscientes do presente. Sinal de que o tempo não é o que passa, mas o que pulsa. E Paraty, com sua beleza antiga e suas pedras imprevisíveis, revela isso com uma sabedoria que os relógios não captam: só tropeça quem caminha. E só caminha bem quem aprende com o tropeço.

6. A Cidade como Escola Iniciática: Simbolismo e Legado Maçônico

“Nada no mundo sensível é fortuito. Tudo o que permanece, instrui.”
(Lúcia Helena Galvão, comentando a arquitetura como linguagem iniciática)

Paraty não é apenas uma cidade: é um templo a céu aberto. Seu chão de pedras, suas esquinas silenciosas, sua geometria irregular e ao mesmo tempo harmônica, tudo nela sugere um propósito mais alto — como se os construtores que a moldaram tivessem consciência de que estavam erguendo não só casas, mas também consciências.

A história guarda que muitos de seus idealizadores pertenciam à maçonaria. E para os maçons, a cidade não é apenas morada: é metáfora. Cada rua, cada pedra, cada linha do traçado urbano carrega um significado oculto, destinado a quem sabe ver. Porque o verdadeiro mestre não transmite conhecimento em voz alta: ele esconde tesouros à vista de todos — e confia que os iniciados saberão encontrá-los.

Paraty, sob esse olhar, transforma-se em escola iniciática. Caminhar por ela é passar por provas. É submeter-se à pedagogia do desconforto. É experimentar, como ensina a tradição esotérica, que o conhecimento verdadeiro não se dá por transmissão direta, mas por vivência simbólica.

Na Cabala Judaica, isso ecoa no conceito de Shevirat haKelim — a quebra dos vasos. Antes que a luz divina pudesse habitar o mundo, foi necessário que certos recipientes se estilhaçassem. Esse rompimento original deixou faíscas de luz espalhadas na matéria, e cabe ao ser humano, como co-criador, reconhecê-las e resgatá-las. As pedras de Paraty, com sua irregularidade luminosa, são como fragmentos desses vasos: pedaços do mundo aparentemente quebrados, mas que brilham para quem tem olhos de ver.

A cidade nos convida, assim, a um processo de Tikun Olam — de restauração espiritual. Ela não facilita a jornada, mas justamente por isso a eleva. Não há rua reta demais, nem passo confortável demais. E isso não é falha de planejamento: é intencionalidade simbólica. É como nos ensinamentos do Oriente, em que o mestre exige que o discípulo repita cem vezes um gesto simples, não para testá-lo, mas para transformá-lo.

Em Paraty, aprende-se a caminhar com consciência, a observar o entorno como espelho da alma. E como nos templos antigos — gregos, egípcios, hindus — a própria disposição dos espaços parece projetada para guiar o iniciado. As igrejas voltadas para o mar, as ruas que se alagam em determinadas marés, os relevos discretos esculpidos nos edifícios coloniais: tudo aponta para uma arquitetura do espírito.

Montaigne, ao refletir sobre a educação verdadeira, dizia que “mais vale uma cabeça bem feita do que uma cabeça cheia”. Paraty, com sua maestria silenciosa, modela a primeira: não nos enche de informações, mas nos esculpe a atenção. Exige-nos humildade, paciência, integração com o meio — valores iniciáticos por excelência.

E foi caminhando com Tricia, observando os detalhes escondidos nas paredes, as pedras dispostas em padrões quase secretos, os encaixes entre as casas e a natureza, que entendi: não era apenas uma cidade antiga. Era um rito. Um espaço de revelação.
E como todo rito verdadeiro, Paraty não se explica — se vive. E a cada passo, a cada escorregão evitado, a cada silêncio partilhado, algo em nós se realinha. Como se a cidade estivesse ali não apenas para ser contemplada, mas para nos transformar.

7. Conclusão: O Caminho Interior que se Revela no Exterior

“O caminho mais longo que o ser humano pode percorrer é do intelecto ao coração — e, às vezes, ele começa por uma pedra no chão.”
(Sabedoria hassídica)

Não é o destino que define a qualidade da travessia, mas a consciência de cada passo. E caminhar pelas ruas de Paraty ao lado de Tricia foi, mais do que uma experiência estética ou turística, uma jornada iniciática em silêncio — daquelas que transformam sem alarde e ensinam sem intenção.

A humildade, que tantas vezes confundimos com submissão ou apagamento, revelou-se ali em sua forma mais nobre: como arte de caminhar com respeito. Respeito pelo caminho, pelo tempo, pelo outro, pelo próprio tropeço. Entendi, então, que o humilde não é o que se humilha, mas o que compreende — e por isso se curva. Curva-se não por servidão, mas por reverência à realidade.

Cada pedra de Paraty foi, nesse sentido, uma mestra. Algumas ensinaram atenção. Outras, paciência. Algumas exigiram flexibilidade. Outras, coragem para recomeçar. Todas, porém, apontaram para a mesma direção: a da escuta.

Na tradição judaica, diz-se que Shema Yisrael — “Escuta, ó Israel” — é o coração da fé. Escutar é o primeiro mandamento espiritual. E escutar, nesse caso, não é apenas ouvir sons, mas perceber os sinais sutis que o mundo oferece àqueles que caminham com o coração desperto. Paraty, sem dizer palavra, grita para quem sabe escutar.

Heráclito diria que cada pedra é um instante. Lao-Tsé, que cada tropeço é um fluxo. Buber, que cada passo é uma relação. Aristóteles, que cada decisão de por onde pisar é um ato ético. E os místicos da Cabala, que cada irregularidade do chão é reflexo da grande ruptura original — e que, ao caminhar com humildade, participamos do movimento sagrado de restaurar o mundo com nossas próprias mãos e passos.

Essa jornada é espiritual, filosófica e amorosa. E talvez o mais belo seja perceber que não se trata de buscar novos caminhos, mas de caminhar de modo novo pelos caminhos de sempre. Paraty continua ali, com suas pedras. Mas quem volta após compreendê-la não é mais o mesmo. Porque aquele que aprende a abaixar o olhar para o chão, paradoxalmente, eleva o espírito.

Ao lado de Tricia, aprendi que compartilhar o caminho é também um modo de oração. Que avisar com ternura sobre uma pedra solta, ajustar o passo ao do outro, sorrir após um tropeço, são formas discretas e profundas de amar. E que o verdadeiro sagrado não está nas alturas, mas no chão bem pisado, no tempo bem vivido, na presença bem oferecida.

Paraty me ensinou isso. Sem dizer nada, disse tudo. E agora que volto a outros caminhos, levo comigo a lição de que a humildade é o alicerce invisível de toda sabedoria. Porque só os que sabem olhar para baixo — com respeito, atenção e silêncio — são dignos de olhar o mundo com olhos verdadeiramente elevados.

Nota do Autor

Não sou especialista em pedras nem mestre em humildade. Escrevo, talvez, como quem tropeça — mas ao menos tenta entender o que o tropeço tem a ensinar.

Este ensaio nasceu de um passeio comum com minha amada Tricia em Paraty, dois anos atrás, daqueles em que a vida se revela mais do que se mostra. Paraty apenas fez o que as cidades sábias fazem: ensinou sem dizer. Eu apenas me dispus a escutar.

É possível que, ao escrever sobre humildade, eu tenha incorrido em alguma vaidade — afinal, há sempre um risco quando se tenta dizer coisas elevadas sem se elevar demais. Mas caminhar ao lado de alguém que se ama (e que também ensina com o silêncio) ajuda a manter os pés no chão.

Se este texto servir a alguém, que seja como as pedras de Paraty: discretamente. Sem impor caminho, apenas exigindo atenção.

Jorge Henrique de Freitas Pinho

(*) O autor é advogado, Procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Estado do Amazonas – ACLAJ.