O Caminho da Impermanência

Análise do poema “Caminante” à luz dos ensinamentos de Buda, Confúcio, Lao Tsé e Wu Hsin

Em agosto de 1997, fui convidado por meu colega Procurador do Estado, Júlio Cezar Lima Brandão, então Chefe do Jurídico do Instituto de Proteção Ambiental do Estado Amazonas – IPAAM, a participar de um curso a ser ministrado na Environmental Protection Agency na cidade Washington nos Estados Unidos da América. Naquela época havia um vôo da Aeropostale que seguia de Manaus para Miami, com uma escala de nove horas em Caracas. Devido ao longo tempo de espera que transcorrreira das 8:00 as 17:00 decidimos, Júlio e eu, fazer um rápido tour pela cidade que estava a dois anos de ser solapada pelo Chavismo.

Nesse tour passeamos pela cidade e, amantes de livros, fomos a uma livraria. Lá encontrei uma edição com poemas de Antonio Machado na qual continha seu lindo poema Caminante do qual eu conhecia apenas o verso “caminante, no hay camino,
se hace camino al andar”.
Encantado com esse achado, devorei o livro e memorizei o profundo e belo poema por inteiro.

Esse poema me acompanha, desde então, aprofundando minhas convicções pessoais na metafísica que rege nossas vidas.

Hoje decidi entregar minha interpretação desse lindo poema.

O Poema de Antonio Machado

Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino,
sino estelas en la mar.

Sobre as Influências de Antonio Machado

Embora Antonio Machado não tenha sido explicitamente influenciado pelas filosofias orientais, suas ideias apresentam paralelos notáveis com essas tradições. Machado foi fortemente influenciado pelo pensamento ocidental, especialmente pelas correntes existenciais e espiritualistas de sua época, como o idealismo alemão (Immanuel Kant e Arthur Schopenhauer), o existencialismo (Friedrich Nietzsche) e o misticismo espanhol (São João da Cruz e Miguel de Unamuno). No entanto, muitos dos temas centrais de suas obras dialogam, mesmo que indiretamente, com as filosofias orientais.

O poema “Caminante” é um convite poético para refletirmos sobre a vida como um percurso único e irrepetível que ecoa o pensamento de grandes pensadores do oriente. Machado nos desafia a abandonar a ideia de caminhos predefinidos para abraçar a criação de uma jornada constante e perspassada pela impermanência.

Assim, ao nos depararmos com os ensinamentos de Buda, Confúcio, Lao Tsé e Wu Hsin, encontramos perspectivas que enriquecem a visão externada por Machado em seu poema Caminante, e que se voltam a nos oferecer sabedoria prática para trilhar nosso próprio caminho.

Buda: Caminho como a Verdade

O ensinamento de Buda sobre as Quatro Nobres Verdades é uma base essencial para compreender o caminho:

1. A existência do sofrimento (dukkha): O sofrimento existe.

2. A origem do sofrimento no apego e no desejo: Ele tem uma origem.

3. A possibilidade de cessar o sofrimento: Ele tem um fim.

4. O caminho para a cessação do sofrimento, o Nobre Caminho Óctuplo: E sobretudo existe um caminho para eliminar sofrimento.

Segundo Buda, o caminho é mais importante que o destino em si mesmo, pois o destino é apenas um pretexto para encetarmos o caminho.

A prática do Nobre Caminho Óctuplo (compreensão, pensamento, fala, ação, modo de vida, esforço, atenção plena e concentração) não é um meio para chegar a um fim distante, mas uma vivência presente que incorpora a verdade.

Assim como Machado sugere que o caminho “se faz ao andar”, Buda afirma que a verdade não é algo a ser alcançado no futuro, mas algo que é experimentado no único tempo real de que disposmos: o presente. Esse atmo de segundo que perspassa enquanto digito as letras que compõem as palavras deste texto. É o só o que temos, posto que o passado já foi e o futuro ainda está por vir. E mais, a qualidade do nosso futuro bem como a beleza do nosso passado depende estritamente do que estamos fazendo a cada instante.

Qual a qualidade dos nossos pensamentos, compreensão, fala, ação, modo de vida, esforço, atenção plena e concentração neste instante?

A resposta a esta pergunta irá modelar nosso futuro e definirá nosso passado. Tanto melhores forem nossos passos no Óctuplo Caminho, mais profícuos serão nossos resultados.

O poema nos lembra que o destino é uma ilusão e que a impermanência do caminho é o que nos conecta à essência da existência. Ao rejeitarmos a fixação no passado ou no futuro, entramos em harmonia com o momento presente, como ensinado por Buda.

Confúcio: Caminho da Ética e da Harmonia

Para Confúcio, o caminho está intrinsicamente ligado à prática das virtudes e ao cultivo de uma vida em harmonia com os outros e com o cosmos. Ele acreditava que o Dao (Tao, em chinês) era moldado por ações éticas, que influenciam não apenas o indivíduo, mas toda a sociedade.

O poema de Machado se harmoniza perfeitamente com a visão confuciana ao destacar que o caminho não é herdado ou imposto, mas criado a cada decisão, ou seja, a cada passo que encetamos na direçãopor nós escolhida. O ato de andar e deixar pegadas (huellas) simboliza escolhas conscientes que refletem nossas virtudes, como a justiça, a bondade, a temperança, a honestidade e a sinceridade.

Confúcio, em sua filosofia, nos lembra que o caminho não é solitário; ele é trilhado em relação aos outros. Assim, o poema também pode ser lido como um chamado para construirmos juntos um mundo mais ético e compassivo, passo a passo.

Lao Tsé: Aceitação da Impermanência

Lao Tsé, em seu Tao Te Ching, ensina que o Tao pode ser visto como o grande movimento, pois representa a dinâmica que permeia toda a existência, e é, ao mesmo tempo, o caminho e o propósito. Embora o Tao seja fluido e indefinível, ele fornece uma orientação natural para aqueles que se conectam à sua essência. Essa ideia se harmoniza com a linda metáfora de Machado sobre as “estrelas no mar”. Embora as ondas apaguem as pegadas e a impermanência reine, as estrelas no mar – refletidas ou imaginadas – sempre serviram como pontos de referência aos navegadores ou àqueles que caminham, indicando o rumo, mesmo em meio à vastidão e ao desconhecido.

Na visão de Lao Tsé, as estrelas podem ser vistas como a personificação do Tao. Elas não forçam, tampouco impõem, mas iluminam suavemente o caminho para quem estiver disposto a observar. Assim como o Tao não é fixo, as estrelas também mudam de posição ao longo da noite, das estações e das eras cosmológicas, lembrando-nos de que a orientação está sempre disponível, desde que estejamos em harmonia com o momento presente e atentos à natureza ao nosso redor.

A metáfora das estrelas no mar também simboliza a confiança necessária para navegar no fluxo da vida, mesmo sem mapas definidos. Lao Tsé encorajaria o caminante de Machado a não temer a ausência de um caminho pré-traçado, pois o sentido verdadeiro, ou a direção correta, está tanto no cosmos quanto dentro de si mesmo.

Ao caminharmos sob a orientação do Tao, as estrelas – tanto as que vemos no céu quanto as que percebemos no reflexo do mar – nos lembram que o caminho surge não por planejamento rígido, mas pela interação dinâmica entre aquele que caminha e o ambiente. A beleza dessa filosofia está na aceitação de que, embora o caminho seja incerto, a orientação está sempre presente, se tivermos atenção e sensibilidade para perceber.

Wu Hsin: Quietude na Jornada

Wu Hsin aborda a vida como um paradoxo: enquanto caminhamos externamente, é dentro de nós que o verdadeiro movimento acontece. Ele ensina que o momento presente é o único ponto de acesso à realidade, ao passo que a quietude interior é o estado natural do ser.

“Caminante, no hay camino” reflete essa sabedoria ao mostrar que a jornada externa é uma metáfora para a jornada interna. Cada passo é um ato de atenção plena que nos conecta à quietude interior, mesmo em meio ao movimento.

Para Wu Hsin, a vida não é um movimento em direção a um destino final, mas uma sequência contínua de momentos presentes. Nesse sentido, as “estrelas no mar” de Machado ganham um significado profundo: o caminho não é algo fixo, mas é indicado por experiências e insights que surgem no presente.

Essas “estelas”, assim como as estrelas no céu que guiaram navegadores por milênios, simbolizam a sabedoria interna que ilumina o próximo passo, mesmo que o caminho como um todo permaneça desconhecido. Essas estrelas não são mapas detalhados, mas lampejos momentâneos que aparecem no instante em que são necessários.

Wu Hsin enfatiza que viver plenamente significa estar atento a esses referenciais sutis. O poema de Machado nos lembra que a vida não é uma estrada reta com um destino claro, mas o processo de encontrar direção na impermanência. A aceitação de que o caminho não precisa ser visível por completo é a chave para confiar no fluxo da vida.

Cada instante efêmero carrega significado e direção suficientes para o próximo passo. Machado e Wu Hsin nos ensinam que não precisamos “saber” o caminho de antemão, mas apenas estar presentes e atentos para as estrelas que surgem no horizonte, iluminando o que realmente importa: o momento presente.

Conclusão

Antonio Machado, em “Caminante”, apresenta uma visão poética da vida como uma jornada em constante construção, sem caminhos predeterminados. Essa ideia, quando analisada à luz dos ensinamentos de Buda, Confúcio, Lao Tsé e Wu Hsin, revela uma profunda convergência de sabedorias que transcendem tempo e cultura.

Buda nos ensina que o caminho é a própria prática do momento presente, onde as Quatro Nobres Verdades e o Nobre Caminho Óctuplo nos mostram que a impermanência não é uma ameaça, mas a essência do despertar. Confúcio ressalta que o caminho é moldado por nossas ações éticas e virtudes, enquanto Lao Tsé nos convida a fluir com o Tao, aceitando a impermanência e encontrando orientação nas estrelas que indicam a direção correta sem a impor.

Wu Hsin, por sua vez, completa essa visão ao destacar que o verdadeiro caminho não é externo, mas interno, vivido em um presente contínuo onde lampejos de sabedoria iluminam o próximo passo. Machado expressa isso poeticamente com suas “estrelas no mar”, que não traçam um caminho fixo, mas oferecem direção suficiente para avançarmos com confiança e atenção plena.

Assim, “Caminante” é mais do que um poema; é um convite à reflexão sobre como vivemos nossas vidas. Ele nos lembra que o destino é a jornada, em si mesma, que a impermanência é o pano de fundo da existência de tal sorte que, a cada passo, criamos um caminho único e significativo.

Que possamos caminhar atentos às estrelas que surgem, confiando na beleza do presente bem como na sabedoria que nos orienta e conduz, mesmo quando o caminho permanece invisível.

(*) O autor é advogado e Procurador do Estado aposentado. Dedica este artigo ao seu colega e amigo Júlio Cezar Lima Brandão.