Porto da pedra: só nos resta cantar

Nós sofremos tanto, nossa história é de tanta dor, tanto sofrimento e tanta violência, que o único consolo que temos é cantar

Mudou o carnaval ou mudei eu? Invejo damas e cavalheiros oitentões, que ainda têm energia para saracotear em
blocos, trios elétricos e aténos desfiles das escolas de samba.

Durante um tempo, balancei meu esqueleto de bloco em bloco. Depois, desacelerei e me limitei ao Cordão Umbilical, o preferido de minhas netas.

Quando o corpo exigiu, sentado no sofá, passeia acompanhar o carnaval pela TV. Hoje, nem no sofá, não por perder o encanto pela festa mais popular do planeta, mas porque, aos 75 anos, durmo como sol e acordo com as galinhas.
Cabe a pergunta: Qual o interesse em expor aqui minha vidinha de senxabida? É apenas para esclarecer que não vi o que aqui vou contar.

Não vi com esses olhos embaçados que a terra está querendo comer. Quem viu e me contou foi o “Precatório”, apelido de um ex-aluno, cunhado do primo da vizinha da tia do Arnaldo Bigode, um dos autores do samba-enredo
da Unidos do Porto da Pedra, que desfilou no sábado(18), ecoando o canto do indigenista Bruno Pereira, assassinado no Alto Solimões (AM).

Invenção da Amazônia

O escritor francês Júlio Verne,  que nunca esteve na Amazônia, jamais sonharia que mais de um século depois desfilaria na Passarela do Samba numa jangada, tendo seu romance como base do enredo. Lá estávamos navegantes andinos, a Amazônia viva e a Amazônia em chamas, os ribeirinhos e os mitos amazônicos.

Nascida em 1978 de um bloco de rua, a Porto da Pedra esteve sempre ligada a temas sensíveis: loucos, moradores
de rua, prostitutas, marginais, vítimas da violência policial, assim como personalidades do mundo da literatura e das
artes. Agora, Ainvenção da Amazônia lhe deu o título de campeã da Série Ouro de 2023 e ela volta à elite do carnaval
carioca.

As Escolas de Samba são escolas educativas.

Incomodada, a ditadura militar exigiu “temas patrióticos” e censurou, em 1974, o samba Aruanã Açu da Vila Isabel, no qual Martinho da Vil a defendia o meio ambiente. Neste ano, a Vila elogiou a Transamazônica. Combate ao  racismo, sabedoria indígena, celebração da negritude e das religiões afro-brasileiras são temas que já desfilaram na Sapucaí, assim como causas ecológicas, crise climática, aquecimento global, clamor da floresta e até a recuperação de personagens esquecidos pela História.

O leão historiador

“Enquanto os leões não tiverem seus próprios historiadores, as histórias de caça sempre glorificarão o caçador”–reza o provérbio Igbo da Nigeria. O carnaval é o “leão historiador”, faz a crônica do Brasil, subverte a memória e ressuscita aquilo que o caçador pretende enterrar. No entanto, há quem condene a festa.

-Criticaram a gente por estar sambando, quando a chuva castigava São Gonçalo, que ficou de baixo d´água e
registrou mortes de vários moradores –me disse o “Precatório”. Lembrei a ele o seminário sobreas línguas
faladas no Brasil, realizado em 2006,em Brasília, quando dona Fiota, filha de escravizados, falou, não em
português, mas na Girada Tabatinga, com a qual seus pais escravizados se comunicavam na senzala. No final, pediu
licença para cantar: -Nós sofremos tanto, nossa história é de tanta dor, tanto sofrimento e tanta violência,
que o único consolo que temos é cantar.

E ela se pós a cantar.

Aos que escaparam da morte por desabamento, por balas da polícia, do tráfico, da milícia, do garimpo, só  esta mesmo cantar o canto de esperançado Bruno Pereira, consagrado pela Escola Porto da Pedra, cujo estribilho foi entoado em língua Katukina: -WahanararaiWahanararai, marinawahkinadik

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