Ainda não tive o prazer de ler “Fragmentos de Tempos Vividos” lançado por sua autora, Marilza de Mello Foucher, no Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, em Manaus, na terça (7). Vou adquiri-lo na noite de autógrafos sábado (18) na Blooks Livraria no Espaço Itaú de Cinema do Rio. Depois, dou notícias.
A escritora, prima do poeta Thiago de Mello, reside em Paris há mais de 40 anos, desde quando foi fazer seu doutorado em Economia. Lá tivemos uma convivência diária, na época em que cursava eu o doutorado em História. Juntos participamos de vários movimentos, entre eles do Comitê Internacional pela Defesa da Amazônia (CIDA), que editava o boletim Sauve qui peut… l´Amazonie”, para o qual contribuímos com vários artigos.
Povo Sahraoui
Alguns “deliciosos relatos” constam do livro de 220 páginas, com as peripécias vividas pela autora, que “trocou o mundo da canoa pelo mundo do metrô”, como revela a jornalista Rosa Freire Furtado, mas nunca deixou de remar. A filósofa e crítica literária Marcia Tiburi classificou a obra como “encantadora”.
Não sei se Marilza conta no livro a manifestação de 150 mil pessoas, em junho de 1982, quando desfilamos da Bastilha até a Place de la Republique para protestar contra a visita do presidente dos EUA, Ronald Reagan, que participava da Reunião de Cúpula dos Sete Países Industrializados. Entre os manifestantes, no cordão dos imigrantes, estávamos nós, um grupo de brasileiros, entre eles o escritor Márcio Souza, de passagem por Paris.
Havia comunistas, trotskistas de variadas tendência, militantes de diversas centrais sindicais – CGT, CFTC, Force Ouvrière, cada grupo separado dos demais por um cordão, gritando palavras de ordem de acordo com seus interesses e ideologias, mas todos ali unidos contra o pilantra do Reagan. Foi ali que nasceu meu interesse pelo povo Sahraoui.
No meio da multidão, havia dois, apenas dois, não mais que dois jovens da Frente Polisário, o movimento de libertação nacional, que lutava pela autodeterminação do povo Sahraoui, cujo território no Saara Ocidental havia sido invadido por forças de ocupação estrangeira do Marrocos. Cada um segurava a ponta de uma faixa com dizeres contra o colonialismo, do qual Reagan era o símbolo mais acabado.
Índios do deserto
Considerados vítimas do jogo geopolítico internacional das grandes potências, lá estavam os dois militantes da Frente Polisário, no meio da multidão, sussurrando palavras de ordem, que ninguém ouvia e que se perdiam entre os gritos de outras organizações. Nós, os brasileiros, nos aproximamos e ouvimos um tímido clamor dos dois:
– Peuple Sahroui, oui, ou, oui, Ronald Reagan, non, non, non.
Decidimos, então, reproduzir em um berro uníssono aquelas palavras, que contagiaram toda a manifestação:
– PEUPLE SAHROUI, OUI, OU, OUI, RONALD REAGAN, NON, NON, NON.
De repente, parecia que a luta do povo Sahraoui, que quer dizer em árabe “originário do deserto”, era o objetivo daquela passeata. Nossa simpatia por eles aumentou, quando soubemos que Saharaoui é uma espécie de guarda-chuva que abriga várias tribos seminômades e grupos étnicos, criadores de camelos, que compartilham um idioma comum, o hassaniva, da família linguística árabe beduína. Ou seja, os Saharaoui, os “índios do deserto”, somos todos nós.
O outro fragmento já mereceu crônica, em 1995, quando Marilza esteve em Manaus para avaliar o projeto Criação de uma Rede Autônoma de Saúde Indígena (RASI) apoiado pelo CCFD – o Comitê Católico contra a Fome e pelo Desenvolvimento.